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16 junho 2007

Livros Dentro de Livros

Acredito que um dos grandes problemas do ensino de literatura no país - e consequentemente também na formação dos leitores adultos - é que os professores não se preocupam em ensinar os fundamentos básicos da teoria da literatura. Um reflexo disso é quando reconhecemos que boa parte dos adolescentes do ensino médio não sabem, por exemplo, o que é um personagem na literatura, apenas intuem. Prova disso é que em pleno século XXI ainda vemos alunos acreditarem piamente em tudo o que está escrito ou é contado pelo narrador. Assim não há como não perder boa parte do prazer da leitura, afinal em obras onde recursos literários avançados são utilizados, estes não são percebidos pelo leitor. O personagem diz algo, mas quer que o leitor entenda justamente o contrário. Não entender que o personagem está fazendo um deslocamento entre significante e significado pode inclusive comprometer a compreensão da ação.

Quando examinamos a literatura contemporânea, fica evidente que várias obras têm como pilar não a história em si mas o uso que o autor faz de recursos literários - especialmente recursos avançados de metalinguagem. Dentro dessa classe de literatura, chama a atenção livros onde existem personagens que falam sobre outros livros. Destaco um trecho em especial, onde o escritor argentino Ricardo Piglia escreve sobre a obra-prima de Joyce, "Ulisses". Antes, porém, vejamos como Piglia é um escritor singular da literatura contemporânea.

Piglia escreve não apenas ficção, mas também ensaios de crítica literária e leciona literatura latino americana em Princeton. Sua íntima relação com a teoria da literatura, especialmente a literatura argentina, é fonte de influência em sua literatura, com trechos literários que são verdadeiras declarações de amor à literatura. O livro "Nome Falso" exemplifica bem isso. Trata-se de uma obra em homenagem ao escritor argentino Roberto Arlt. A obra relata a descoberta de um texto inédito do escritor argentino, chamado Luba. O Piglia-narrador é um crítico literário que está reunindo informações para o lançamento de uma obra-crítica do autor. De certo modo, portanto, é possível afirmar que os livros que Roberto Arlt escreveu tornaram-se personagens de Piglia, talvez os personagens principais da novela.

Em "O Último Leitor", Piglia demonstra ter grande paixão também por James Joyce, que é tema de um dos seus belíssimos ensaios. Daí, quando examinamos a ficção, novamente encontramos lá a referência a Joyce. Em "Respiração Artificial" por exemplo, há uma longa discussão entre dois personagens chamados Renzi e Marconi sobre vários autores da rica literatura argentina. Em meio ao erudito embate surge Joyce:
"Na realidade, disse Marconi, isto parece um romance de Aldous Huxley. Huxley?, disse Renzi. Prefiro o capítulo da Biblioteca, Escila e Caribdis, na Telemaquíada gaélica. Discutamos, então, sobre Hamlet, disse Marconi. Cara, disse Renzi, mas Concordia está cheia de eruditos. Estou só começando, disse Marconi. Ou por acaso não iremos demonstrar pela álgebra que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele mesmo é o espectro do próprio pai? Hein, Buck Mulligan?, disse Marconi"

Notem a ironia inserida na narrativa de Piglia: Renzi constrói uma teoria no mínimo polêmica e, em meio à sua apresentação, surge a teoria de Dedalus sobre Shakespeare em "Ulisses", que é motivo de chacota por parte de Mulligan. No episódio, o personagem defende a idéia de que Roberto Arlt é o maior escritor argentino do século XX. E Borges? Bom, para o personagem, Borges é um autor do século XIX e para provar isso faz uma série de citações e ligações entre escritores argentinos. E daí no meio da explicação, aparece Joyce. Uma piada contada somente para os iniciados. Sentimo-nos como fazendo parte de um grupo de amigos que ri de algo que é incompreensível para quem está ali apenas como visitante. E como é delicioso descobrir um grande autor com gostos literários similares aos nossos!

Um grande mérito desse tipo de literatura é que ela recria o prazer que sentimos ao lermos um livro que está sendo citado. Lemos e gostamos de um grande livro. Depois ao lermos outro autor, de que também estamos gostamos, e encontramos uma maneira literária do autor nos dizer que compartilha conosco do prazer de uma leitura. Um modo prático do autor nos dizer que quanto mais lermos, mais prazer derivaremos dessa atividade.

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