Animais e Homens
O escritor Ricardo Piglia tem uma teoria que diz que um bom conto na verdade conta duas histórias simultâneas, uma bem evidente, que fica na superfície e outra que está sempre presente, embora essa muitas vezes apareça somente no final. É possível estender essa mesma teoria para alguns romances, que contam uma história para aquele leitor desatento e outra não tão evidente para um leitor que percebe outros matizes. O novo livro de Edward Bunker, "Fábrica de Animais", é um exemplo claro disso. O título, a biografia do autor e suas outras obras sugerem que este é mais um livro sobre a violência da vida num dos mais perigosos presídios dos EUA. San Quentin é o protótipo ideal de uma máquina desumanizadora de seres: a sobrevivência é garantida somente pela força, o que faz com que pessoas se ajuntem em grupos que são respeitados pela sua capacidade assassina. Além disso, o ódio racial americano está no auge, com negros, brancos e chicanos cada vez mais separados e apenas uma fagulha faz explodir uma rebelião em que membros de todos os grupos são assassinados indiscriminadamente. Também, os estupros fazem com que os mais fracos se convertam em moeda de troca entre os detentos e para ser respeitado o único meio é se tornar alguém temido no momento em que põe um pé lá dentro. Por último, a violência policial - muitas vezes apenas uma extensão dos ódios e da violência dos próprios presos - aproveita uma crise para entrar em cena, num acerto de contas contra seus desafetos. Lido assim por um leitor apressado, o livro não é nada mais que um retrato da vida na violenta fábrica de animais. No entanto, o leitor mais atento irá perceber que este cenário serve apenas para contrastar o tema central do livro.
A chave para se chegar a esse segundo ponto é dada logo no início da obra. O autor dedica o livro aos 'seus irmãos - dentro e fora'. A amizade, portanto, é ponto fundamental na obra. Por meio dela é possível emergir da violência bárbara e reconhecer um ser humano apesar de todo o ambiente ser uma verdadeira fábrica de animais, com capacidade de destruir todas as qualidades que caracterizariam um ser. O livro procura mostrar que mesmo num lugar assim, ainda é possível prevalecer algo de humano.
"Fábrica de Animais" começa contando a história de Ronald Decker, um jovem e bonito traficante de drogas que é apanhado pela justiça e começa a conhecer um ambiente totalmente diferente daquele que estava acostumado, o das celas sujas da burocracia judicial. No terceiro capítulo, a cena corta e subitamente somos apresentados a Earl Copen, um detento experiente que está cumprindo sua terceira pena em San Quentin e que é bem tratado porque conhece as pessoas certas lá dentro. O inexperiente jovem e o detento veterano irão se encontrar e desenvolver uma amizade que é o tema central do livro. Não há delicadeza entre eles, muito menos um interesse homossexual, somente um apego sincero que faz com que o experiente Copen passe a ajudar o jovem Decker. Suas expressões de afeto seriam interpretadas no mundo fora das prisões como insultos estúpidos, mas como aprendemos com o passar do tempo, as leis que regem o mundo de fora não são as mesmas que vigoram dentro dos muros de San Quentin. Mas, apesar disso, ainda reconhecemos os personagens como humanos. Por mais traços indicativos de animais violentos que esses adquirem, ainda conseguimos vê-los dum modo diferente - principalmente quando os dois personagens centrais são comparados com seus companheiros, como T.J., Paul e Vito. É como uma fantasia para representar um papel numa fábula, onde é possível ver o personagem atuando, na figura dum animal, mas que nunca é tão perfeito que não consigamos distinguir que há um ator por trás da máscara. É nisso que os dois se convertem, em atores que representam seres brutais para sua sobrevivência. A amizade serve, portanto, como um modo de rejeitar ser transformado pela fábrica, um modo de tentar enganá-la.
Sem dúvida este é um dos melhores romances de Bunker. Além da temática interessante, o livro contém ainda as mesmas qualidades das outras obras do autor, como a narrativa ágil, os personagens bem construídos e um enredo bem elaborado. Serve como uma excelente porta de entrada pelo submundo dos outsiders retratados por Bunker, atiçando a curiosidade do leitor aos seus principais livros "Nem os Mais Ferozes" e "Cão Come Cão".
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