Compre seus livros através deste blog, clicando aqui.

09 junho 2006

A Aposta de Machado de Assis

Ironias finas, texto elegante, estilo surpreendente para a época. Tudo isso pode ser dito de um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis. No entanto, poucos param para refletir sobre um dos maiores acertos do escritor: sua aposta nos leitores. Machado de Assis, antes de escrever "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", havia escrito romances que podem ser classificados como populares. O romance "Helena", por exemplo, é o típico romance-folhetim: uma personagem descrita de modo perfeito, romântico, para que o leitor já nas primeiras páginas reconheça a fórmula e siga a leitura, tal qual hoje acontece com as novelas televisivas. Nos primeiros capítulos do romance, a família de um conselheiro durante a leitura de seu testamento, surpreende-se com o reconhecimento de uma filha chamada Helena. Notem como, após a introdução dela na família, a descrição parece ser a mesma de um sem-número de heroínas dos clássicos brasileiros que lemos na juventude:

"Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno."


Embora pode-se reconhecer através do texto um escritor talentoso, é preciso admitir também que o escritor trata o leitor como um bobinho, um leitor que está ali apenas para construir aquela imagem romântica na mente e seguir os capítulo da novelinha, sem nenhuma preocupação em escrever algo diferente do cenário da época. Traçando um paralelo com nossos dias, poderíamos dizer que Machado de Assis poderia ganhar muito dinheiro escrevendo roteiros de novelas seguindo uma fórmula de sucesso.

Como era de se esperar, em "Helena" o final é perfeitamente previsível, cuidadosamente preparado para causar um impacto emocional no leitor - no caso possivelmente o público feminino. O leitor é levado até a 'crise' da mocinha e derrama lágrimas por sua morte. Tal efeito era a garantia comercial para o sucesso da publicação e, consequentemente, para um novo contrato de publicação de um novo folhetim. Viver com essa garantia de sucesso comercial era talvez tudo o que um escritor da época poderia imaginar como sucesso. Mas Machado de Assis paradoxalmente resolveu abandonar tudo isso quando começou a publicar "Memórias Póstumas de Brás Cubas". A famosa dedicação inicial da obra revela isso:

"AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS"


Já no título e na primeira frase da obra percebemos que Machado de Assis passou a rejeitar a idéia de que somente se se escrevesse para um público bobinho, ele poderia obter sucesso. Machado de Assis passou a apostar em outro tipo de público, um leitor mais qualificado, capaz de interpretar as ironias de seu texto e de perceber a invetividade de sua nova obra. Com um refinamento ainda maior, Machado de Assis poderia assim construir ambigüidades próprias em seu texto, que tornariam a interpretação de sua obra muito mais do que uma construção de imagens românticas. Somente essa coragem de abandonar o caminho fácil da fórmula romântica e acreditar na capacidade do leitor de evoluir, já faz de Machado de Assis um escritor a ser admirado. Daí, quando lemos "Dom Casmurro" e percebemos sua capacidade de fazer com que o leitor perceba como a voz de um narrador pode nos trair, levando-nos a um julgamento falso, vemos um escritor ímpar, que ampliou os limites da literatura, fazendo com que nós leitores, derivássemos um prazer ainda maior: o prazer de duvidar do que lemos. E talvez esta seja sua qualidade mais destacada, de acreditar no leitor mais inteligente.

Subscribe with Bloglines