ULISSES: O ROMANCENIGMA - 2
O melhor romance da história da Literatura?
por Sérgio Barcellos Ximenes
Respondendo
Sim, para os estudiosos da literatura, os apreciadores de enigmas lingüísticos e os escritores desejados de conhecerem as possibilidades técnicas e estilísticas do romance.
Ulisses figurou na ponta de todas as listas de 100 melhores romances do século XX. Nenhuma delas teve como jurados somente os leitores.
Ao permitir-se incluir no texto de Ulisses todo tipo de enigma e brincadeira lingüística ...
__________
"I've put in so many enigmas and puzzles that it will keep the professors busy for centuries."
Tradução: "Incluí tantos enigmas e jogos de palavras que ele [o meu romance] irá manter os acadêmicos ocupados durante séculos".
__________
... Joyce acabou liberando a própria criatividade, e essa liberação resultou num bom número de inovações na técnica do romance. Das inovações resulta o valor de Ulisses para a história do romance, para os romancistas e para os estudiosos da literatura.
O primeiro mérito está na própria atitude de liberdade criativa: a intenção de fazer algo novo, tanto no conteúdo quanto na forma, não se contentando em usar apenas o que os outros tinham feito e haviam deixado como legado.
O segundo mérito reside na ousadia de seguir até o fim as próprias idéias, por mais que elas fossem (e foram) revolucionárias, diferentes ou aparentemente absurdas.
O terceiro mérito se encontra nas técnicas derivadas dessa ousadia criativa levada ao mais alto grau.
No artigo anterior, comentei sobre as características do primeiro capítulo da tradução brasileira de Ulisses. Todas elas continuam presentes nos dois capítulos seguintes: os neologismos; a união adjetivo + substantivo + adjetivo; os nomes e lugares não explicados; o detalhismo das descrições de eventos óbvios; o estilo enigmático do autor.
Entre essas características, obstáculos à fluidez da leitura, persiste a redação destinada ao público português. Exemplo:
"Leal ao mais alto poder constituído na terra, actuado por um amor inacto de rectitude seus objectivos seriam a estreita manutenção [...]" (p. 866)
Assim como, no artigo anterior, dei exemplos daquilo que fez de Ulisses uma experiência quase insuportável para leitores comuns, agora darei exemplos daquilo que fez de Ulisses um romance valioso para estudiosos e escritores: as técnicas inovadoras, que se tornaram uma opção a mais para os romancistas e os ficcionistas em geral.
Comecemos pela técnica mais famosa do livro, o fluxo de consciência, na qual o escritor representa uma sucessão de fatos percebidos, pensados, lembrados e imaginados pelo personagem, descrevendo-os quase sempre em primeira pessoa (o ponto de vista do "eu"). Cada exemplo específico, reproduzido abaixo, serve para revelar determinada categoria de eventos internos que pode ser transmitida por essa forma de descrição de experiências, o fluxo de consciência. A grande variedade de tipos de experiências explorada por Joyce permitiu-lhe passar ao leitor uma impressão muito rica do mundo interno do ser humano.
. A atividade perceptiva.
"Nada do que ela possa comer. Ele mirou ao redor de si. Não." (p. 74)
. A reprodução fiel do conteúdo da percepção.
[O personagem lê a marca desgastada pelo uso do chapéu:] "A legenda suada dentro da copa do chapéu anunciou-lhe mudamente: chapéu Plasto de alta qualid." (p. 75)
[Quando o personagem escreve com uma caneta cuja tinta está acabando:] "Recebi sua car e flô. Onde diabo pus? Num bolso ou out." (p. 362)
Ao reler uma carta já mostrada ao leitor em sua inteireza, aparecem em seqüência, sem pontuação, apenas as palavras que chamam a atenção do personagem (p. 103).
. A mudança de ponto de vista.
"Imagino como é que eu pareço a ela. Altura de uma torre? Não, ela pode saltar sobre mim." (p. 74)
. O resultado de uma observação.
"Selos: estampas de reverso colante." (p. 75)
. O aparecimento súbito de uma idéia.
"Um milhão de libras, espera um instante." (p. 104)
. A experiência concreta que serve de exemplo de determinada categoria já mencionada.
"Exemplo, aquela gata esta manhã na escada." (p. 489)
. A autocorreção.
"O preto conduz, reflecte (refracta, é isso?) o calor." (p. 76)
"Como estou eu dizendo barris? Galões." (p. 105)
. A dedução de uma regra lógica.
"Isso é realmente uma coincidência. Lógico centenas de vezes pensa-se numa pessoa e não se topa com ela." (p. 215)
. A consulta à memória.
"Uma rapariga tocando um desses instrumentos como é que se chamam: dulcímeros. Passo." (p. 76)
"Qual é mesmo o nome? É de Mosenthal. Raquel, será? Não." (p. 100)
"A propósito, rasguei aquele envelope? Sim: debaixo da ponte." (p. 107)
"Quem é que me contou? Mervin Brown." (p. 137)
"Pen alguma coisa. Pendennis? Minha memória está voltando. Pen ...?" (p. 203)
"... os dois perto do comoéquesechama?" (p. 390)
. A lembrança súbita, intercalada no pensamento.
"Aquele sujeito que apresentou provas reais contra os invencíveis costumava receber a, seu nome era Carey, a comunhão toda manhã". (p. 107)
. A lembrança elaborada.
"Ela estava com aquele vestido creme com o rasgão que ela nunca consertou. Me faz um carinho, Poldy. Meu Deus, estou morrendo de vontade. Como a vida começa.
Pegou então barriga, teve que rejeitar o concerto de Greystones. Meu filho nela." (p. 117)
. A alteração na consciência corporal.
"Minha rótula está doendo. Ui. Agora está melhor." (p. 137)
. A especulação.
"Será que os peixes jamais ficam mareados?" (p. 490)
. O comentário pessoal.
"Falar: como se isso endireitasse as coisas." (p. 96)
"Idéia inteligente São Patrício o trevo." (p. 105)
. A busca da melhor forma de expressão.
"Um tal ... como podia dizê-lo? ... um tal porte de rainha." (p. 288)
. O recado dado a si mesmo.
"Tenho de cuidar da minha aparência minha idade." (p. 478)
. A conversa em imaginação.
"Olha o andar acabrunhado dele. De quem comeu ovo podre." (p. 215)
. A formulação de hipóteses.
"Imagino se ele perdesse o alfinete da dele." (p. 107)
"Está com uma bossa no lado do chapéu. A carruagem provavelmente." (p. 152)
. A afirmação categórica.
"Sentem sim. Tenho certeza." (p. 106)
. A afirmação não muito categórica.
"Acredito que sim." (p. 216)
. A dúvida ou indecisão.
"Ou dou uma passada pelo velho Harris e bato um papo com o jovem Sinclair?" (p. 217)
"Falo ou não falo a respeito daquele cavalo que Lenehan?" (p. 226)
. O desejo súbito.
"Pés grossos tem aquela mulher de meias brancas. Tomara que a chuva os emporcalhe." (p. 219)
. A decisão de efeito imediato.
"Responder algo." (p. 43)
"Dizer-lho algo. Melhor não bancar o condescendente." (p. 236)
"Fechar depressa o livro. Não deixar ver." (p. 316)
. O lembrete para si mesmo.
"Preciso mandar endireitar os meus óculos velhos." (p. 217)
. A interrupção do raciocínio.
"Inventar uma história para algum provérbio que? (p. 92)
"Lugar adorável deve ser: ..." (p. 94)
"Pétalas muito cansadas para." (p. 94)
"Estranha a atmosfera toda de." (p. 107)
"Mulher morrendo por." (p. 109)
. A emoção ou reação afetiva.
"Arrepia-me só de ver." (p. 221)
"Isso até que tem graça, suponho. Ou não." (p. 221)
"Gosto da maneira com que dá aquela curva lá." (p. 226)
. A experiência de natureza interjetiva.
"Puxa! Simplesmente medonho!" (p. 210)
"Palavra que suou." (p. 212)
"Por São Jorge, que ele levou um trompaço." (p. 212)
"Interessante." (p. 217)
"Homens, homens, homens." (p. 220)
"Pobre jovenzinho!" (p. 237)
"Danado de gim gostoso aquele." (p. 313)
"Olhos deste tamanho." (p. 370)
"É pegar elas vivas, oh." (p. 476)
. O maravilhamento.
"Surpreendentes as coisas que se esquecem nos trens e vestiários." (p. 217)
"Olá, um cartaz." (p. 239)
. A descoberta cotidiana.
[Ao ver a máquina impressora liberar uma fileira de cadernos dobrados, o som Sllt faz o narrador pensar:] "Quase humana a maneira por que sllt chama a atenção. Fazendo esforços para falar. Essa porta também sllt rangendo, pedindo que a fechem. Tudo fala a seu próprio modo. Sllt." (p. 160)
O próprio estilo empregado na reprodução do fluxo de consciência representou uma inovação literária. Transmitindo ao leitor frases curtas, picotando as frases e eliminando conjunções e ligações entre as orações, Joyce impôs ao leitor o trabalho de juntar logicamente essas partes de frases separadas pelo ponto final. Sai a junção lingüística, feita pelo narrador, e entra a junção lógica, feita pelo leitor. O sentido não é dado, mas somente sugerido. As relações entre as frases dependem da aplicação do raciocínio, participação que aumenta o envolvimento do leitor com a história.
"Todos querem meter o bedelho. As mulheres também. Curiosidade. Coluna de sal." (p. 201)
"Pobre senhora Purefoy! Marido metodista. Método na sua loucura." (p. 210)
"É o que elas gostam. Tomar homem de outra mulher. Ou mesmo falar disso. Diferentes de mim. Contente de me ver livre da mulher de um gajo. Comida de prato frio." (p. 479)
Joyce exercita vários estilos literários ao longo das 957 páginas. Como exemplos, o estilo comercial, o legal, o descritivo, o geográfico, o romântico, o intelectual, o científico, o estilo de crônica, de notícia política, de discurso, de ata de assembléia, de peça teatral e de anúncio, sem contar o estilo poético e até mesmo o musical, representado por uma partitura presente no texto. Se, de um lado, são interessantes exercícios para o autor, uma exibição notável de flexibilidade estilística, às vezes se tornam um suplício para o leitor, pela obviedade e extensão da brincadeira. Exemplo extremo: as 170 páginas da peça teatral, de conteúdo absurdo, simbólico e onírico.
Outras características do estilo de Joyce:
. O uso de estruturas coloquiais.
"Nunca mais vi ele." (p. 327)
. A quebra da ordem direta da frase.
"Voz profunda esse sujeito do Dlugacz tem." (p. 91)
"Chatice esse negócio de enterro." (p. 110)
"Artes do demo tudo aquilo." (p. 157)
"Cheiro graxo pesado há sempre nessas oficinas." (p. 161)
"Arrebenta com o dia de um homem um enterro." (p. 163)
"Olhando para baixo viu adejando poderosamente, girando por entre as amuradas desoladas do cais, gaivotas." (p. 198)
"Egoístas esses abstêmios são." (p. 210)
"A sina dos polícias é às vezes até que feliz." (p. 211)
"Essas gentes literárias etéreas são todas." (p. 216)
. A estrutura telegráfica.
"Uma flor. Creio que é uma." (p. 102)
"Mesmo aviso à porta." (p. 105)
"Pena tão vazio." (p. 106)
"Muito poético aquilo sobre o triste. Música provoca isso." (p. 364)
"¾ Vou dar um pulo na esquina. De volta num minuto." (p. 75)
"¾ A esposa bem, espero ¾ disse ..." (p. 98)
. A ênfase baseada em repetições.
"A saia amarrotada sacudindo-se às batidas às batidas às batidas." (p. 79)
"Com lero-lero, lero-lero, lero-lero, lero-lero." (p. 93)
"Longo longo longo repouso." (p. 104)
"interminabilidadedadedadedade ..." (p. 358)
"trazeeeer", "apressaaar" (p. 921)
" ... ; Lydia, admirada, admirava." (p. 359)
"Lugugúgubre." (p. 368)
"Longe. Longe. Longe. Longe." (p. 374)
"Rogai por nós. E rogai por nós. E rogai por nós. Boa idéia a repetição." (p. 488)
. O uso dos dois-pontos.
"Vaidosa: muito." (p. 88)
"Falar: como se isso endireitasse as coisas." (p. 96)
"Orgulhosa: rica: meias de seda." (p. 97)
"Conta-lhe: mais e mais: tudo. Então um suspiro: silêncio." (p. 104)
"A carruagem deu a galope uma volta: estacou." (p. 128)
"Feiosa: nenhuma mulher pensa que é." (p. 493)
. Neologismos.
"Miss Bronze desblusava o colo." (p. 336)
histerirrindo (p. 337)
dentiarreganhava-se (p. 344)
descavalheiresco (p. 588)
inaquecido (p. 834)
inesperabilidade (p. 836)
pernicruzado (p. 625)
avantipatas (p. 643)
. Onomatopéias.
"... mugindo maaaaaa." (p. 214)
"Tara: bum bum bum." (p. 219)
"Oh o tal de totó-uauuauuau." (p. 227)
"Plaqueplaque. Plaquepacpac. Placplocplac." (p. 333)
"Rrrpr. Craa. Craandl." (p. 334)
"Bonde. Crã, crã, crã." (p. 378)
"AS GAIVOTAS: Keke koko ki kankury." (p. 578)
"A CHAMA DE GÁS: Puuua! Fuuuiiii!" (p. 633)
"O JATO DE GÁS: Pfungue!" (p. 700)
"O CAVALO: (Relincha) Cahahahahasa." (p. 723)
"... a dlenguedlengue da cítara ... " (p. 911)
"... fchiiiiiiiiiiiiiiiiiiifcho aquele trem de novo ..." (p. 929)
"Chplac. Ela deixou súbito livre em ricochete sua liga elástica pinçada chplachquente contra sua quentelástica coxa de mulher chplachável." (p. 346)
Em suas descrições, Joyce evita o clichê, tanto o da percepção quanto o de seu registro lingüístico, procurando a novidade em conteúdo e forma. Além disso, o autor dá preferência não à interpretação do que o personagem percebe, mas àquilo que a percepção detecta de modo "ingênuo", direto, anteriomente ao ato mental e quase automático de interpretação dos estímulos percebidos.
"O harmônico de alegre silvo dulcigorjeante soou uma, duas notas, cessou. A cortina da janela foi corrida para o lado. Um cartão de Apartamentos não mobilados deslizou do caixilho e caiu. Um fornido braço nu generoso luziu, deixou-se ver, sustentado por um branco corpinho-anágua e estiradas alças. Mão de mulher atirou uma moeda por sobre o gradil da fachada. Caiu na calçada." (p. 294)
Cabe ao leitor realizar as interpretações óbvias. Outros exemplos da criatividade joyciana nas descrições.
"Despejava nervosamente seu embaraço." (p. 16)
"Sorriu com uma ternura intranqüila para a janela da cozinha." (p. 88)
"O colete prímula de Buck Mulligan sacudia-se alegre com o seu riso." (p. 323)
"Seu monóculo rebrilhava irritado ao sol." (p. 325)
Na área do conteúdo, Joyce utiliza muito ditados populares e expressões corriqueiras, ora reproduzidos com fidelidade ...
"Não há rosas sem espinhos." (p. 103)
... ora alterados criativamente.
"- Quem rouba ao pobre empresta a Deus." (p. 34)
"Ódio à primeira vista." (p. 152)
Algumas definições criativas comparecem no texto:
Píer - "uma ponte frustrada" (p. 37)
Queijo - "cadáver de leite" (p. 151)
E muitos jogos de palavras, uma das preferências do autor.
. Adivinha.
"- Quem quer matar uma adivinha? - perguntou Stephen." (p. 39)
"Que ópera é vegetal e mineral? Reflictam, ..." (p. 173)
"Palhaço. Pegaram a piada? Palha e aço. Fiu!" (p. 176)
. Anagrama.
Há 4 anagramas com o nome "Leopold Bloom" na página 815.
. Acróstico.
Um acróstico na página 815.
. Criptograma.
Um criptograma na página 872.
. Palíndromos.
"- Madame oro e'm Adam. Abel met'em Leba." (p. 180)
. Charada.
"EE. Gh: és gagá." (p. 206)
. Trava-língua.
"Peter Piper picou um pito da pica de pico de picante pimenta." (p. 250)
"Alguém toca uma porta, toca-toca com um coto, cutucou o Paul de Kock, com um falastrão castão batão, com um cuco curracurracurra cuco. Cucocuco." (p. 367)
"O tape cego marchava tapetapitando com a tapeta o meio-fio, tape a tape." (p. 374)
Encontram-se ainda brincadeiras com troca de letras ...
"- Banadamente drilhante - ... " (p. 180)
... e brincadeiras com acréscimo de sílaba.
"- Muitibus obrigadibus." (p. 184)
A fala infantil está presente:
"Voi bicado bor uma apelhinha guanto ejdafa torminto no chartinchinho." (p. 549)
Na área poética, surgem rimas ...
"Abrolhos. Com antolhos em meus olhos." (p. 638)
... e muitas aliterações (repetições próximas de fonemas).
"Ginga sege ginga seginha." (p. 332)
"Um veleiro! Um véu vagando sobre as vagas." (p. 332)
" ... halo de hálito alentado." (p. 334)
"... açocascos cascossoando açossoantes." (p. 335)
"... enrolou um roliço corpo rondo." (p. 340)
"Zelo o zurzia, amor o amoldava à vontade de vagar, pesar a partir." (p. 502)
"... movente mugente multitude, matadores do sol." (p. 535)
Um exemplo de como várias dessas características do estilo joyciano podem aparecer num período:
"Cintilolhudo, o crânio rufo perto da escribilâmpada luciverdevelada buscava a cara, barbada em meio a sombras mais verdescuras, um ollav, sacrolhudo." (p. 241)
Considerando-se apenas o conteúdo, Ulisses poderia ter como subtítulo "O Elogio do Supérfluo". Fatos corriqueiros recebem uma atenção desmedida e são supervalorizados, transformados em fatos especiais, extraordinários.
"A jovem mulher com lento cuidado destacava de sua saia clara um tufinho aderente." (p. 301)
Para usar uma palavra muito cara aos críticos literários, esses fatos viram epifanias: momentos inesquecíveis, percepções maravilhosas, quase divinas.
"Tenho pensado muitas vezes ao rememorar esse estranho tempo que foi esse pequeno acto, trivial em si mesmo, esse riscar daquele fósforo, que determinou todo o sobrecurso de nossas ambas vidas." (p. 183)
Se essa visão original funciona aqui e ali, ao ser empregada em 957 páginas torna-se desgastada e tediosa. A impressão geral deixada pelo romance é a de um menino que ganhou um brinquedo e não quer parar de brincar com ele. Passou longe de Ulisses a aplicação de uma regra artística fundamental: o critério de seletividade, ou seja, o uso criterioso de uma técnica, apenas no tempo e na quantidade necessárias para gerar o efeito desejado. Como vimos antes, a intenção original de Joyce não incluía essa preocupação quanto à escolha do material, e sim o acúmulo incontável de efeitos lúdicos e enigmáticos. E a exibição autocomplacente de uma versatilidade lingüística inigualável.
"Juro pelos meus botões que se a gente apanha uma palha do puto do chão e fala pro Bloom: Olha pra isto, Bloom. Vê esta palha? Isto é palha. Juro pela minha tia que ele pega a falar a respeito por uma hora e na certa ainda podia continuar falando." (pp. 410-411)
Redigindo joycianamente: por tudo, em termos de conteúdo, Ulisses é a glorificação da palha do chão.
A única parte realmente legível do romance é o final (895-957), o monólogo interior de Molly Bloom, um trecho contínuo sem nenhuma pontuação. Uma espécie de recompensa tardia a quem tanto perseverou. Na primeira vez que li um trecho dessa parte, há muitos anos, num livro sobre a técnica do romance, comecei a colocar os sinais de pontuação e gostei do exercício. Sei que soa como um desplante aos joycianos, mas sugiro a prática aos professores de Português. Depois, poderão dizer, com orgulho: "Meus alunos leram Joyce". E ainda aprenderam pontuação.
Nesse final, pela primeira vez em todo o romance, um personagem ganha vida porque podemos acompanhar seus pensamentos sem a interferência do narrador, sem seus jogos de palavras, neologismos e outras novidades de forma e de conteúdo que atrapalharam o contato com os outros personagens, nas mais de 800 páginas anteriores. O efeito é curioso: Molly torna-se a lembrança mais agradável da leitura de Ulisses.
Concluindo, eis o que significa Ulisses para mim (e lembre-se: somente para mim):
Como leitura, isto é, como uma obra a destinada a leitores comuns ou mesmo exigentes, um desastre literário, a garantia de horas, dias e semanas do mais intenso tédio e exasperante falta de compreensão, experiências causadas pelos desafios lingüísticos e enigmísticos exagerados e por uma verborragia vazia e insuportável.
Como repositório de técnicas literárias originais (em seu tempo), isto é, como uma obra destinada a escritores e estudiosos da literatura, um manual valioso, a ser consultado esporadicamente para servir de referência na aplicação dessas técnicas.
Como romance-enigma, isto é, como uma obra destinada a seu principal público-alvo, os apreciadores de enigmas, uma criação única, garantia de anos de diversão, mesmo para os mais exigentes enigmistas.
"Oh, droga! - disse ela. - Por que não dizer isso com palavras de todo mundo?" (p. 85)
"Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas?" (p. 67)
Não, não acho.
Agora, se você quiser, leia e tire suas próprias conclusões.
Referências
Ulisses, James Joyce, Civilização Brasileira, 2000.
por Sérgio Barcellos Ximenes
Respondendo
Sim, para os estudiosos da literatura, os apreciadores de enigmas lingüísticos e os escritores desejados de conhecerem as possibilidades técnicas e estilísticas do romance.
Ulisses figurou na ponta de todas as listas de 100 melhores romances do século XX. Nenhuma delas teve como jurados somente os leitores.
Ao permitir-se incluir no texto de Ulisses todo tipo de enigma e brincadeira lingüística ...
__________
"I've put in so many enigmas and puzzles that it will keep the professors busy for centuries."
Tradução: "Incluí tantos enigmas e jogos de palavras que ele [o meu romance] irá manter os acadêmicos ocupados durante séculos".
__________
... Joyce acabou liberando a própria criatividade, e essa liberação resultou num bom número de inovações na técnica do romance. Das inovações resulta o valor de Ulisses para a história do romance, para os romancistas e para os estudiosos da literatura.
O primeiro mérito está na própria atitude de liberdade criativa: a intenção de fazer algo novo, tanto no conteúdo quanto na forma, não se contentando em usar apenas o que os outros tinham feito e haviam deixado como legado.
O segundo mérito reside na ousadia de seguir até o fim as próprias idéias, por mais que elas fossem (e foram) revolucionárias, diferentes ou aparentemente absurdas.
O terceiro mérito se encontra nas técnicas derivadas dessa ousadia criativa levada ao mais alto grau.
No artigo anterior, comentei sobre as características do primeiro capítulo da tradução brasileira de Ulisses. Todas elas continuam presentes nos dois capítulos seguintes: os neologismos; a união adjetivo + substantivo + adjetivo; os nomes e lugares não explicados; o detalhismo das descrições de eventos óbvios; o estilo enigmático do autor.
Entre essas características, obstáculos à fluidez da leitura, persiste a redação destinada ao público português. Exemplo:
"Leal ao mais alto poder constituído na terra, actuado por um amor inacto de rectitude seus objectivos seriam a estreita manutenção [...]" (p. 866)
Assim como, no artigo anterior, dei exemplos daquilo que fez de Ulisses uma experiência quase insuportável para leitores comuns, agora darei exemplos daquilo que fez de Ulisses um romance valioso para estudiosos e escritores: as técnicas inovadoras, que se tornaram uma opção a mais para os romancistas e os ficcionistas em geral.
Comecemos pela técnica mais famosa do livro, o fluxo de consciência, na qual o escritor representa uma sucessão de fatos percebidos, pensados, lembrados e imaginados pelo personagem, descrevendo-os quase sempre em primeira pessoa (o ponto de vista do "eu"). Cada exemplo específico, reproduzido abaixo, serve para revelar determinada categoria de eventos internos que pode ser transmitida por essa forma de descrição de experiências, o fluxo de consciência. A grande variedade de tipos de experiências explorada por Joyce permitiu-lhe passar ao leitor uma impressão muito rica do mundo interno do ser humano.
. A atividade perceptiva.
"Nada do que ela possa comer. Ele mirou ao redor de si. Não." (p. 74)
. A reprodução fiel do conteúdo da percepção.
[O personagem lê a marca desgastada pelo uso do chapéu:] "A legenda suada dentro da copa do chapéu anunciou-lhe mudamente: chapéu Plasto de alta qualid." (p. 75)
[Quando o personagem escreve com uma caneta cuja tinta está acabando:] "Recebi sua car e flô. Onde diabo pus? Num bolso ou out." (p. 362)
Ao reler uma carta já mostrada ao leitor em sua inteireza, aparecem em seqüência, sem pontuação, apenas as palavras que chamam a atenção do personagem (p. 103).
. A mudança de ponto de vista.
"Imagino como é que eu pareço a ela. Altura de uma torre? Não, ela pode saltar sobre mim." (p. 74)
. O resultado de uma observação.
"Selos: estampas de reverso colante." (p. 75)
. O aparecimento súbito de uma idéia.
"Um milhão de libras, espera um instante." (p. 104)
. A experiência concreta que serve de exemplo de determinada categoria já mencionada.
"Exemplo, aquela gata esta manhã na escada." (p. 489)
. A autocorreção.
"O preto conduz, reflecte (refracta, é isso?) o calor." (p. 76)
"Como estou eu dizendo barris? Galões." (p. 105)
. A dedução de uma regra lógica.
"Isso é realmente uma coincidência. Lógico centenas de vezes pensa-se numa pessoa e não se topa com ela." (p. 215)
. A consulta à memória.
"Uma rapariga tocando um desses instrumentos como é que se chamam: dulcímeros. Passo." (p. 76)
"Qual é mesmo o nome? É de Mosenthal. Raquel, será? Não." (p. 100)
"A propósito, rasguei aquele envelope? Sim: debaixo da ponte." (p. 107)
"Quem é que me contou? Mervin Brown." (p. 137)
"Pen alguma coisa. Pendennis? Minha memória está voltando. Pen ...?" (p. 203)
"... os dois perto do comoéquesechama?" (p. 390)
. A lembrança súbita, intercalada no pensamento.
"Aquele sujeito que apresentou provas reais contra os invencíveis costumava receber a, seu nome era Carey, a comunhão toda manhã". (p. 107)
. A lembrança elaborada.
"Ela estava com aquele vestido creme com o rasgão que ela nunca consertou. Me faz um carinho, Poldy. Meu Deus, estou morrendo de vontade. Como a vida começa.
Pegou então barriga, teve que rejeitar o concerto de Greystones. Meu filho nela." (p. 117)
. A alteração na consciência corporal.
"Minha rótula está doendo. Ui. Agora está melhor." (p. 137)
. A especulação.
"Será que os peixes jamais ficam mareados?" (p. 490)
. O comentário pessoal.
"Falar: como se isso endireitasse as coisas." (p. 96)
"Idéia inteligente São Patrício o trevo." (p. 105)
. A busca da melhor forma de expressão.
"Um tal ... como podia dizê-lo? ... um tal porte de rainha." (p. 288)
. O recado dado a si mesmo.
"Tenho de cuidar da minha aparência minha idade." (p. 478)
. A conversa em imaginação.
"Olha o andar acabrunhado dele. De quem comeu ovo podre." (p. 215)
. A formulação de hipóteses.
"Imagino se ele perdesse o alfinete da dele." (p. 107)
"Está com uma bossa no lado do chapéu. A carruagem provavelmente." (p. 152)
. A afirmação categórica.
"Sentem sim. Tenho certeza." (p. 106)
. A afirmação não muito categórica.
"Acredito que sim." (p. 216)
. A dúvida ou indecisão.
"Ou dou uma passada pelo velho Harris e bato um papo com o jovem Sinclair?" (p. 217)
"Falo ou não falo a respeito daquele cavalo que Lenehan?" (p. 226)
. O desejo súbito.
"Pés grossos tem aquela mulher de meias brancas. Tomara que a chuva os emporcalhe." (p. 219)
. A decisão de efeito imediato.
"Responder algo." (p. 43)
"Dizer-lho algo. Melhor não bancar o condescendente." (p. 236)
"Fechar depressa o livro. Não deixar ver." (p. 316)
. O lembrete para si mesmo.
"Preciso mandar endireitar os meus óculos velhos." (p. 217)
. A interrupção do raciocínio.
"Inventar uma história para algum provérbio que? (p. 92)
"Lugar adorável deve ser: ..." (p. 94)
"Pétalas muito cansadas para." (p. 94)
"Estranha a atmosfera toda de." (p. 107)
"Mulher morrendo por." (p. 109)
. A emoção ou reação afetiva.
"Arrepia-me só de ver." (p. 221)
"Isso até que tem graça, suponho. Ou não." (p. 221)
"Gosto da maneira com que dá aquela curva lá." (p. 226)
. A experiência de natureza interjetiva.
"Puxa! Simplesmente medonho!" (p. 210)
"Palavra que suou." (p. 212)
"Por São Jorge, que ele levou um trompaço." (p. 212)
"Interessante." (p. 217)
"Homens, homens, homens." (p. 220)
"Pobre jovenzinho!" (p. 237)
"Danado de gim gostoso aquele." (p. 313)
"Olhos deste tamanho." (p. 370)
"É pegar elas vivas, oh." (p. 476)
. O maravilhamento.
"Surpreendentes as coisas que se esquecem nos trens e vestiários." (p. 217)
"Olá, um cartaz." (p. 239)
. A descoberta cotidiana.
[Ao ver a máquina impressora liberar uma fileira de cadernos dobrados, o som Sllt faz o narrador pensar:] "Quase humana a maneira por que sllt chama a atenção. Fazendo esforços para falar. Essa porta também sllt rangendo, pedindo que a fechem. Tudo fala a seu próprio modo. Sllt." (p. 160)
O próprio estilo empregado na reprodução do fluxo de consciência representou uma inovação literária. Transmitindo ao leitor frases curtas, picotando as frases e eliminando conjunções e ligações entre as orações, Joyce impôs ao leitor o trabalho de juntar logicamente essas partes de frases separadas pelo ponto final. Sai a junção lingüística, feita pelo narrador, e entra a junção lógica, feita pelo leitor. O sentido não é dado, mas somente sugerido. As relações entre as frases dependem da aplicação do raciocínio, participação que aumenta o envolvimento do leitor com a história.
"Todos querem meter o bedelho. As mulheres também. Curiosidade. Coluna de sal." (p. 201)
"Pobre senhora Purefoy! Marido metodista. Método na sua loucura." (p. 210)
"É o que elas gostam. Tomar homem de outra mulher. Ou mesmo falar disso. Diferentes de mim. Contente de me ver livre da mulher de um gajo. Comida de prato frio." (p. 479)
Joyce exercita vários estilos literários ao longo das 957 páginas. Como exemplos, o estilo comercial, o legal, o descritivo, o geográfico, o romântico, o intelectual, o científico, o estilo de crônica, de notícia política, de discurso, de ata de assembléia, de peça teatral e de anúncio, sem contar o estilo poético e até mesmo o musical, representado por uma partitura presente no texto. Se, de um lado, são interessantes exercícios para o autor, uma exibição notável de flexibilidade estilística, às vezes se tornam um suplício para o leitor, pela obviedade e extensão da brincadeira. Exemplo extremo: as 170 páginas da peça teatral, de conteúdo absurdo, simbólico e onírico.
Outras características do estilo de Joyce:
. O uso de estruturas coloquiais.
"Nunca mais vi ele." (p. 327)
. A quebra da ordem direta da frase.
"Voz profunda esse sujeito do Dlugacz tem." (p. 91)
"Chatice esse negócio de enterro." (p. 110)
"Artes do demo tudo aquilo." (p. 157)
"Cheiro graxo pesado há sempre nessas oficinas." (p. 161)
"Arrebenta com o dia de um homem um enterro." (p. 163)
"Olhando para baixo viu adejando poderosamente, girando por entre as amuradas desoladas do cais, gaivotas." (p. 198)
"Egoístas esses abstêmios são." (p. 210)
"A sina dos polícias é às vezes até que feliz." (p. 211)
"Essas gentes literárias etéreas são todas." (p. 216)
. A estrutura telegráfica.
"Uma flor. Creio que é uma." (p. 102)
"Mesmo aviso à porta." (p. 105)
"Pena tão vazio." (p. 106)
"Muito poético aquilo sobre o triste. Música provoca isso." (p. 364)
"¾ Vou dar um pulo na esquina. De volta num minuto." (p. 75)
"¾ A esposa bem, espero ¾ disse ..." (p. 98)
. A ênfase baseada em repetições.
"A saia amarrotada sacudindo-se às batidas às batidas às batidas." (p. 79)
"Com lero-lero, lero-lero, lero-lero, lero-lero." (p. 93)
"Longo longo longo repouso." (p. 104)
"interminabilidadedadedadedade ..." (p. 358)
"trazeeeer", "apressaaar" (p. 921)
" ... ; Lydia, admirada, admirava." (p. 359)
"Lugugúgubre." (p. 368)
"Longe. Longe. Longe. Longe." (p. 374)
"Rogai por nós. E rogai por nós. E rogai por nós. Boa idéia a repetição." (p. 488)
. O uso dos dois-pontos.
"Vaidosa: muito." (p. 88)
"Falar: como se isso endireitasse as coisas." (p. 96)
"Orgulhosa: rica: meias de seda." (p. 97)
"Conta-lhe: mais e mais: tudo. Então um suspiro: silêncio." (p. 104)
"A carruagem deu a galope uma volta: estacou." (p. 128)
"Feiosa: nenhuma mulher pensa que é." (p. 493)
. Neologismos.
"Miss Bronze desblusava o colo." (p. 336)
histerirrindo (p. 337)
dentiarreganhava-se (p. 344)
descavalheiresco (p. 588)
inaquecido (p. 834)
inesperabilidade (p. 836)
pernicruzado (p. 625)
avantipatas (p. 643)
. Onomatopéias.
"... mugindo maaaaaa." (p. 214)
"Tara: bum bum bum." (p. 219)
"Oh o tal de totó-uauuauuau." (p. 227)
"Plaqueplaque. Plaquepacpac. Placplocplac." (p. 333)
"Rrrpr. Craa. Craandl." (p. 334)
"Bonde. Crã, crã, crã." (p. 378)
"AS GAIVOTAS: Keke koko ki kankury." (p. 578)
"A CHAMA DE GÁS: Puuua! Fuuuiiii!" (p. 633)
"O JATO DE GÁS: Pfungue!" (p. 700)
"O CAVALO: (Relincha) Cahahahahasa." (p. 723)
"... a dlenguedlengue da cítara ... " (p. 911)
"... fchiiiiiiiiiiiiiiiiiiifcho aquele trem de novo ..." (p. 929)
"Chplac. Ela deixou súbito livre em ricochete sua liga elástica pinçada chplachquente contra sua quentelástica coxa de mulher chplachável." (p. 346)
Em suas descrições, Joyce evita o clichê, tanto o da percepção quanto o de seu registro lingüístico, procurando a novidade em conteúdo e forma. Além disso, o autor dá preferência não à interpretação do que o personagem percebe, mas àquilo que a percepção detecta de modo "ingênuo", direto, anteriomente ao ato mental e quase automático de interpretação dos estímulos percebidos.
"O harmônico de alegre silvo dulcigorjeante soou uma, duas notas, cessou. A cortina da janela foi corrida para o lado. Um cartão de Apartamentos não mobilados deslizou do caixilho e caiu. Um fornido braço nu generoso luziu, deixou-se ver, sustentado por um branco corpinho-anágua e estiradas alças. Mão de mulher atirou uma moeda por sobre o gradil da fachada. Caiu na calçada." (p. 294)
Cabe ao leitor realizar as interpretações óbvias. Outros exemplos da criatividade joyciana nas descrições.
"Despejava nervosamente seu embaraço." (p. 16)
"Sorriu com uma ternura intranqüila para a janela da cozinha." (p. 88)
"O colete prímula de Buck Mulligan sacudia-se alegre com o seu riso." (p. 323)
"Seu monóculo rebrilhava irritado ao sol." (p. 325)
Na área do conteúdo, Joyce utiliza muito ditados populares e expressões corriqueiras, ora reproduzidos com fidelidade ...
"Não há rosas sem espinhos." (p. 103)
... ora alterados criativamente.
"- Quem rouba ao pobre empresta a Deus." (p. 34)
"Ódio à primeira vista." (p. 152)
Algumas definições criativas comparecem no texto:
Píer - "uma ponte frustrada" (p. 37)
Queijo - "cadáver de leite" (p. 151)
E muitos jogos de palavras, uma das preferências do autor.
. Adivinha.
"- Quem quer matar uma adivinha? - perguntou Stephen." (p. 39)
"Que ópera é vegetal e mineral? Reflictam, ..." (p. 173)
"Palhaço. Pegaram a piada? Palha e aço. Fiu!" (p. 176)
. Anagrama.
Há 4 anagramas com o nome "Leopold Bloom" na página 815.
. Acróstico.
Um acróstico na página 815.
. Criptograma.
Um criptograma na página 872.
. Palíndromos.
"- Madame oro e'm Adam. Abel met'em Leba." (p. 180)
. Charada.
"EE. Gh: és gagá." (p. 206)
. Trava-língua.
"Peter Piper picou um pito da pica de pico de picante pimenta." (p. 250)
"Alguém toca uma porta, toca-toca com um coto, cutucou o Paul de Kock, com um falastrão castão batão, com um cuco curracurracurra cuco. Cucocuco." (p. 367)
"O tape cego marchava tapetapitando com a tapeta o meio-fio, tape a tape." (p. 374)
Encontram-se ainda brincadeiras com troca de letras ...
"- Banadamente drilhante - ... " (p. 180)
... e brincadeiras com acréscimo de sílaba.
"- Muitibus obrigadibus." (p. 184)
A fala infantil está presente:
"Voi bicado bor uma apelhinha guanto ejdafa torminto no chartinchinho." (p. 549)
Na área poética, surgem rimas ...
"Abrolhos. Com antolhos em meus olhos." (p. 638)
... e muitas aliterações (repetições próximas de fonemas).
"Ginga sege ginga seginha." (p. 332)
"Um veleiro! Um véu vagando sobre as vagas." (p. 332)
" ... halo de hálito alentado." (p. 334)
"... açocascos cascossoando açossoantes." (p. 335)
"... enrolou um roliço corpo rondo." (p. 340)
"Zelo o zurzia, amor o amoldava à vontade de vagar, pesar a partir." (p. 502)
"... movente mugente multitude, matadores do sol." (p. 535)
Um exemplo de como várias dessas características do estilo joyciano podem aparecer num período:
"Cintilolhudo, o crânio rufo perto da escribilâmpada luciverdevelada buscava a cara, barbada em meio a sombras mais verdescuras, um ollav, sacrolhudo." (p. 241)
Considerando-se apenas o conteúdo, Ulisses poderia ter como subtítulo "O Elogio do Supérfluo". Fatos corriqueiros recebem uma atenção desmedida e são supervalorizados, transformados em fatos especiais, extraordinários.
"A jovem mulher com lento cuidado destacava de sua saia clara um tufinho aderente." (p. 301)
Para usar uma palavra muito cara aos críticos literários, esses fatos viram epifanias: momentos inesquecíveis, percepções maravilhosas, quase divinas.
"Tenho pensado muitas vezes ao rememorar esse estranho tempo que foi esse pequeno acto, trivial em si mesmo, esse riscar daquele fósforo, que determinou todo o sobrecurso de nossas ambas vidas." (p. 183)
Se essa visão original funciona aqui e ali, ao ser empregada em 957 páginas torna-se desgastada e tediosa. A impressão geral deixada pelo romance é a de um menino que ganhou um brinquedo e não quer parar de brincar com ele. Passou longe de Ulisses a aplicação de uma regra artística fundamental: o critério de seletividade, ou seja, o uso criterioso de uma técnica, apenas no tempo e na quantidade necessárias para gerar o efeito desejado. Como vimos antes, a intenção original de Joyce não incluía essa preocupação quanto à escolha do material, e sim o acúmulo incontável de efeitos lúdicos e enigmáticos. E a exibição autocomplacente de uma versatilidade lingüística inigualável.
"Juro pelos meus botões que se a gente apanha uma palha do puto do chão e fala pro Bloom: Olha pra isto, Bloom. Vê esta palha? Isto é palha. Juro pela minha tia que ele pega a falar a respeito por uma hora e na certa ainda podia continuar falando." (pp. 410-411)
Redigindo joycianamente: por tudo, em termos de conteúdo, Ulisses é a glorificação da palha do chão.
A única parte realmente legível do romance é o final (895-957), o monólogo interior de Molly Bloom, um trecho contínuo sem nenhuma pontuação. Uma espécie de recompensa tardia a quem tanto perseverou. Na primeira vez que li um trecho dessa parte, há muitos anos, num livro sobre a técnica do romance, comecei a colocar os sinais de pontuação e gostei do exercício. Sei que soa como um desplante aos joycianos, mas sugiro a prática aos professores de Português. Depois, poderão dizer, com orgulho: "Meus alunos leram Joyce". E ainda aprenderam pontuação.
Nesse final, pela primeira vez em todo o romance, um personagem ganha vida porque podemos acompanhar seus pensamentos sem a interferência do narrador, sem seus jogos de palavras, neologismos e outras novidades de forma e de conteúdo que atrapalharam o contato com os outros personagens, nas mais de 800 páginas anteriores. O efeito é curioso: Molly torna-se a lembrança mais agradável da leitura de Ulisses.
Concluindo, eis o que significa Ulisses para mim (e lembre-se: somente para mim):
Como leitura, isto é, como uma obra a destinada a leitores comuns ou mesmo exigentes, um desastre literário, a garantia de horas, dias e semanas do mais intenso tédio e exasperante falta de compreensão, experiências causadas pelos desafios lingüísticos e enigmísticos exagerados e por uma verborragia vazia e insuportável.
Como repositório de técnicas literárias originais (em seu tempo), isto é, como uma obra destinada a escritores e estudiosos da literatura, um manual valioso, a ser consultado esporadicamente para servir de referência na aplicação dessas técnicas.
Como romance-enigma, isto é, como uma obra destinada a seu principal público-alvo, os apreciadores de enigmas, uma criação única, garantia de anos de diversão, mesmo para os mais exigentes enigmistas.
"Oh, droga! - disse ela. - Por que não dizer isso com palavras de todo mundo?" (p. 85)
"Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas?" (p. 67)
Não, não acho.
Agora, se você quiser, leia e tire suas próprias conclusões.
Referências
Ulisses, James Joyce, Civilização Brasileira, 2000.
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