A Influência de Dogmas na Tradução da Bíblia
A Bíblia é um grande livro, que todos deveriam ler por uma série de motivos. Se você for religioso, deve saber que grande parte dos religiosos de nosso país se dizem cristãos e, se afirmam isso, pressupõe-se que tenham a Bíblia como guia principal de suas crenças religiosas. Se você se interessa pela história de nossa civilização, deve saber que a Bíblia é o livro que mais influenciou o Ocidente e que seu domínio e influência servem para justificar uma série de costumes atuais, não necessariamente religiosos. Se você simplesmente gosta de boas histórias e boa literatura, existe ali uma série delas, que satisfazem aos mais variados leitores.
A Bíblia, no entanto, é lida mais freqüentemente apenas através de traduções, já que a maioria dos brasileiros desconhece idiomas tais como o hebraico, o aramaico e o grego. Com uma boa tradução isso não necessariamente pode representar um grande problema – embora claro, como toda tradução, o acesso ao texto se torne apenas uma aproximação e alguns detalhes podem ser perdidos. Mas, tratando-se de um texto base para um número tão grande de religiosos, fica a dúvida se os dogmas e pensamentos destes - que são exteriores ao texto original - influenciam as decisões do tradutor. Infelizmente, o que se nota na maioria das vezes, é um esforço do tradutor em fazer com que idéias que se desenvolveram em períodos posteriores ao da escrita original, sejam sugeridas na tradução. Pior, em alguns casos, usam notas explicativas para assinalar uma idéia que não está no texto. Um recurso que confunde o leitor que não compartilha da mesma idéia.
Uma das traduções em português mais elogiadas, a "Bíblia de Jerusalém", foi realizada, segundo consta na apresentação da nova edição, revista e ampliada de 2002, "por uma equipe de exegetas católicos e protestantes", ou seja, um grupo de tradutores com pensamentos e conceitos religiosos que poderiam direcionar a tradução para algum aspecto que não se encontra no texto original. Também, a contracapa da tradução nos informa que a edição tem "aprovação eclesiástica" e cita uma carta protocolar da CNBB. É difícil imaginar que o texto possa ser tão bem recepcionado pelos religiosos sem nenhuma influência.
Pode-se citar, como exemplo claro disso, o conceito da imortalidade da alma, que é ensinado pela maioria dos religiosos que se afirmam cristãos. A palavra traduzida em português como alma, é 'nefesh' em hebraico e 'psyché' (ou 'psyké') em grego. Segundo o dogma religioso, todo ser humano possui uma alma separada do corpo, imaterial e imortal. Essa idéia não está contida no texto original da Bíblia, mas sim, conforme a própria "Bíblia de Jerusalém" informa na nota sobre o texto da segunda carta aos Coríntios capítulo 5 versículo 8, "essa expectativa de felicidade da alma separada do corpo deve-se a uma influência do pensamento grego". De fato, a idéia é bastante explorada por Platão, no "Fédon". Um conceito, portanto, posterior ao texto bíblico. Mas apesar de reconhecer isso, o que os tradutores fazem em todo o texto é omitir a palavra 'alma' quando há a idéia de mortalidade, substituindo-a por uma série de termos incorretos, e deixando-a sempre onde a idéia de imortalidade pode ser sugerida.
A começar pelo Gênesis, por exemplo, a tradução do texto do capítulo 2, versículo 7, diz:
"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente."
Apesar da nota ao pé da página reconhecer a palavra 'nefesh' no texto hebraico original, o termo é traduzido como 'ser vivente' e não como 'alma vivente'. Por quê? Provavelmente porque o uso da palavra 'alma' acarretaria reconhecer que o texto afirma que Deus não fez uma criatura que possuía uma alma imaterial, mas diz que a própria criatura era uma alma.
Outro exemplo onde ocorre a palavra hebraica é no livro de Ezequiel, capítulo 18, versículo 4, que é traduzido:
"Todas as vidas (nefashohth) me pertencem, tanto a vida do pai, como a do filho. Pois bem, aquele (nefesh) que pecar, esse morrerá."
Embora neste texto o termo apareça duas vezes e, sem dúvida, está ligado à idéia de mortalidade, a tradução é feita dum modo que o leitor não conseguisse chegar a essa mesma idéia. Neste caso a tradução não usa sequer uma nota para esclarecer ao leitor que a palavra hebraica foi traduzida dum modo diferente.
A incongruência da tradução do termo fica evidente quando há no texto grego citações do texto hebraico. Veja a tradução do livro de Atos, capítulo 2, versículo 27:
"porque não abandonarás minha alma no Hades..."
Este texto é uma citação do Salmo 16, versículo 10, que na mesma tradução diz:
"pois não abandonarás minha vida no Xeol..."
Por que os textos não são traduzidos da mesma forma? Provavelmente porque no livro de Atos a idéia de imortalidade pode ser sugerida, mas não no texto do Salmo. Daí, como forma de corroborar a tradução influenciada, o leitor encontra na nota do texto da primeira carta aos Coríntios, capítulo 15, versículo 44, a informação de que o termo grego psyché "pode designar... até mesmo o ser espiritual e imortal" e cita como 'comprovação' disso justamente o texto de Atos transcrito acima.
Evidentemente, toda religião tem o direito de ditar e divulgar seus dogmas e o fiel pode acreditar ou não nestes. A crítica aqui não é feita à religião ou ao dogma, mas sim às opções utilizadas pelos tradutores em adequar o texto original às suas próprias crenças. Não é papel do tradutor interpretar qualquer texto e sim torná-lo o mais fiel possível ao original. No caso citado, qualquer tradutor com algum conhecimento do texto original bíblico concordará que em nenhum trecho deste existe a expressão "alma imortal", embora a palavra "alma" apareça centenas de vezes.
Para que o leitor tenha uma idéia mais clara do texto, a recomendação é que procurem ter acesso ao maior número de traduções possível. Compare-as, assinalando as diferenças existentes e procurando esclarecer o porquê de tais diferenças. Traduções clássicas, como a "King James" em inglês, também ajudam. Quanto às notas religiosas, é preciso sempre um cuidado especial. A dúvida sempre serve como método de esclarecimento.
A Bíblia, no entanto, é lida mais freqüentemente apenas através de traduções, já que a maioria dos brasileiros desconhece idiomas tais como o hebraico, o aramaico e o grego. Com uma boa tradução isso não necessariamente pode representar um grande problema – embora claro, como toda tradução, o acesso ao texto se torne apenas uma aproximação e alguns detalhes podem ser perdidos. Mas, tratando-se de um texto base para um número tão grande de religiosos, fica a dúvida se os dogmas e pensamentos destes - que são exteriores ao texto original - influenciam as decisões do tradutor. Infelizmente, o que se nota na maioria das vezes, é um esforço do tradutor em fazer com que idéias que se desenvolveram em períodos posteriores ao da escrita original, sejam sugeridas na tradução. Pior, em alguns casos, usam notas explicativas para assinalar uma idéia que não está no texto. Um recurso que confunde o leitor que não compartilha da mesma idéia.
Uma das traduções em português mais elogiadas, a "Bíblia de Jerusalém", foi realizada, segundo consta na apresentação da nova edição, revista e ampliada de 2002, "por uma equipe de exegetas católicos e protestantes", ou seja, um grupo de tradutores com pensamentos e conceitos religiosos que poderiam direcionar a tradução para algum aspecto que não se encontra no texto original. Também, a contracapa da tradução nos informa que a edição tem "aprovação eclesiástica" e cita uma carta protocolar da CNBB. É difícil imaginar que o texto possa ser tão bem recepcionado pelos religiosos sem nenhuma influência.
Pode-se citar, como exemplo claro disso, o conceito da imortalidade da alma, que é ensinado pela maioria dos religiosos que se afirmam cristãos. A palavra traduzida em português como alma, é 'nefesh' em hebraico e 'psyché' (ou 'psyké') em grego. Segundo o dogma religioso, todo ser humano possui uma alma separada do corpo, imaterial e imortal. Essa idéia não está contida no texto original da Bíblia, mas sim, conforme a própria "Bíblia de Jerusalém" informa na nota sobre o texto da segunda carta aos Coríntios capítulo 5 versículo 8, "essa expectativa de felicidade da alma separada do corpo deve-se a uma influência do pensamento grego". De fato, a idéia é bastante explorada por Platão, no "Fédon". Um conceito, portanto, posterior ao texto bíblico. Mas apesar de reconhecer isso, o que os tradutores fazem em todo o texto é omitir a palavra 'alma' quando há a idéia de mortalidade, substituindo-a por uma série de termos incorretos, e deixando-a sempre onde a idéia de imortalidade pode ser sugerida.
A começar pelo Gênesis, por exemplo, a tradução do texto do capítulo 2, versículo 7, diz:
"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente."
Apesar da nota ao pé da página reconhecer a palavra 'nefesh' no texto hebraico original, o termo é traduzido como 'ser vivente' e não como 'alma vivente'. Por quê? Provavelmente porque o uso da palavra 'alma' acarretaria reconhecer que o texto afirma que Deus não fez uma criatura que possuía uma alma imaterial, mas diz que a própria criatura era uma alma.
Outro exemplo onde ocorre a palavra hebraica é no livro de Ezequiel, capítulo 18, versículo 4, que é traduzido:
"Todas as vidas (nefashohth) me pertencem, tanto a vida do pai, como a do filho. Pois bem, aquele (nefesh) que pecar, esse morrerá."
Embora neste texto o termo apareça duas vezes e, sem dúvida, está ligado à idéia de mortalidade, a tradução é feita dum modo que o leitor não conseguisse chegar a essa mesma idéia. Neste caso a tradução não usa sequer uma nota para esclarecer ao leitor que a palavra hebraica foi traduzida dum modo diferente.
A incongruência da tradução do termo fica evidente quando há no texto grego citações do texto hebraico. Veja a tradução do livro de Atos, capítulo 2, versículo 27:
"porque não abandonarás minha alma no Hades..."
Este texto é uma citação do Salmo 16, versículo 10, que na mesma tradução diz:
"pois não abandonarás minha vida no Xeol..."
Por que os textos não são traduzidos da mesma forma? Provavelmente porque no livro de Atos a idéia de imortalidade pode ser sugerida, mas não no texto do Salmo. Daí, como forma de corroborar a tradução influenciada, o leitor encontra na nota do texto da primeira carta aos Coríntios, capítulo 15, versículo 44, a informação de que o termo grego psyché "pode designar... até mesmo o ser espiritual e imortal" e cita como 'comprovação' disso justamente o texto de Atos transcrito acima.
Evidentemente, toda religião tem o direito de ditar e divulgar seus dogmas e o fiel pode acreditar ou não nestes. A crítica aqui não é feita à religião ou ao dogma, mas sim às opções utilizadas pelos tradutores em adequar o texto original às suas próprias crenças. Não é papel do tradutor interpretar qualquer texto e sim torná-lo o mais fiel possível ao original. No caso citado, qualquer tradutor com algum conhecimento do texto original bíblico concordará que em nenhum trecho deste existe a expressão "alma imortal", embora a palavra "alma" apareça centenas de vezes.
Para que o leitor tenha uma idéia mais clara do texto, a recomendação é que procurem ter acesso ao maior número de traduções possível. Compare-as, assinalando as diferenças existentes e procurando esclarecer o porquê de tais diferenças. Traduções clássicas, como a "King James" em inglês, também ajudam. Quanto às notas religiosas, é preciso sempre um cuidado especial. A dúvida sempre serve como método de esclarecimento.
<< Home