A Grande Escolha de Guimarães Rosa
O grande segredo de "Grande Sertão: Veredas", que hoje em dia já não é segredo para ninguém, é que Diadorim é uma mulher. Na época que li a obra pela primeira vez não sabia disso e, apesar de ficar fascinado com a linguagem excepcional de Guimarães Rosa, achava que tudo ali no fundo, no fundo, era uma viadagem danada. Já li e ouvi comentários de críticos malhando Guimarães Rosa por não ter escrito um romance homossexual. Para eles, a descoberta é decepcionante, revela uma falta de ousadia, que faria o romance ficar ainda melhor. A releitura da obra reforçou minha opinião de que nada ali foi escrito por acaso. Por isso, obviamente, acho que quem afirma que descobrir que Diadorim é uma mulher é decepcionante, precisa reler urgentemente a obra. Relendo o romance percebi que esse 'ápice' está sendo apresentado a todo momento, apenas não percebemos porque somos 'levados na conversa' por Riobaldo.
Primeiramente, percebam que curioso: Riobaldo narra a história despejando sobre o ouvinte (ou leitor, no nosso caso) uma série de 'causos' que vão se encaixando e assim vai montando sua própria história. Diversas vezes o próprio Riobaldo afirma estar narrando sua história porque não a entende. Ou seja, para nós leitores, é como se estivéssemos escutando Riobaldo em um divã e o que ele diz às vezes é dito de modo claro, às vezes dum modo obscuro, como que envolvido por uma névoa de incertezas. Assim nosso papel como 'ouvintes-psicanalistas' é desvendar as incertezas, 'ouvir' o que é dito e ter perspicácia suficiente para ir além do óbvio. Percebemos o vai-e-vem de um assunto a outro, o que contribui ainda mais para aumentar as dúvidas, mas o que Riobaldo faz é nos convidar a desvendar, junto com ele, seu passado. Um romance construído com essa perspectiva de interação deveria fazer-nos supor que descobertas impressionantes estariam por vir. Principalmente, porque já no início da narrativa percebemos que o grande mistério a ser desvendado é mesmo que tipo de relação existe entre Diadorim e Riobaldo.
Junte a forma narrativa com a linguagem utilizada. É uma narrativa em primeira pessoa, mas numa linguagem composta de duas partes: o linguajar sertanejo e o linguajar oficial, ensinado nas escolas. Essa linguagem dupla é a mais apropriada que poderia haver para descrever um narrador também duplo. Diversas vezes, a mistura de bem e mal, certo e errado, é descrita dum modo que avançamos as páginas sem fazer qualquer julgamento de ações, estamos neutros, assim como o ouvinte da narrativa. Por exemplo, quem aqui, ao ler a obra ia avaliando o certo ou errado do modo de vida jagunço de Riobaldo? Acredito que a maior parte das pessoas não procura se concentrar nessas avaliações, porque não só a narrativa, mas a linguagem utilizada, atenuam alguns fatos.
Por último, o próprio escritor vai aos poucos deixando pistas durante a narrativa, de que no final das contas, Diadorim é mesmo mulher. As passagens que revelam o personagem são quase sempre neutras ou inclinadas para uma imagem feminina. Talvez o momento mais 'masculino' da descrição de Diadorim, é quando Guimarães Rosa nos conta do encontro inicial entre Riobaldo e o menino, às margens do Rio de Janeiro e durante a travessia do São Francisco. Depois disso temos uma descrição delicada do rosto de Diadorim, seu estranho hábito de banhar-se durante a noite, o uso de um casaco que nunca é tirado, etc. Depois de pouco mais de duzentas páginas encontramos esta confissão do segredo:
Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram.
Se com tudo isso ainda existe alguém que pode afirmar que a descoberta é decepcionante, que o escritor foi pouco ousado ou que o romance tem uma finalização ineficaz, sinceramente, a pessoa realmente não entendeu nada daquilo que Guimarães Rosa queria, nem perceberam de fato a grandiosidade da obra.
Primeiramente, percebam que curioso: Riobaldo narra a história despejando sobre o ouvinte (ou leitor, no nosso caso) uma série de 'causos' que vão se encaixando e assim vai montando sua própria história. Diversas vezes o próprio Riobaldo afirma estar narrando sua história porque não a entende. Ou seja, para nós leitores, é como se estivéssemos escutando Riobaldo em um divã e o que ele diz às vezes é dito de modo claro, às vezes dum modo obscuro, como que envolvido por uma névoa de incertezas. Assim nosso papel como 'ouvintes-psicanalistas' é desvendar as incertezas, 'ouvir' o que é dito e ter perspicácia suficiente para ir além do óbvio. Percebemos o vai-e-vem de um assunto a outro, o que contribui ainda mais para aumentar as dúvidas, mas o que Riobaldo faz é nos convidar a desvendar, junto com ele, seu passado. Um romance construído com essa perspectiva de interação deveria fazer-nos supor que descobertas impressionantes estariam por vir. Principalmente, porque já no início da narrativa percebemos que o grande mistério a ser desvendado é mesmo que tipo de relação existe entre Diadorim e Riobaldo.
Junte a forma narrativa com a linguagem utilizada. É uma narrativa em primeira pessoa, mas numa linguagem composta de duas partes: o linguajar sertanejo e o linguajar oficial, ensinado nas escolas. Essa linguagem dupla é a mais apropriada que poderia haver para descrever um narrador também duplo. Diversas vezes, a mistura de bem e mal, certo e errado, é descrita dum modo que avançamos as páginas sem fazer qualquer julgamento de ações, estamos neutros, assim como o ouvinte da narrativa. Por exemplo, quem aqui, ao ler a obra ia avaliando o certo ou errado do modo de vida jagunço de Riobaldo? Acredito que a maior parte das pessoas não procura se concentrar nessas avaliações, porque não só a narrativa, mas a linguagem utilizada, atenuam alguns fatos.
Por último, o próprio escritor vai aos poucos deixando pistas durante a narrativa, de que no final das contas, Diadorim é mesmo mulher. As passagens que revelam o personagem são quase sempre neutras ou inclinadas para uma imagem feminina. Talvez o momento mais 'masculino' da descrição de Diadorim, é quando Guimarães Rosa nos conta do encontro inicial entre Riobaldo e o menino, às margens do Rio de Janeiro e durante a travessia do São Francisco. Depois disso temos uma descrição delicada do rosto de Diadorim, seu estranho hábito de banhar-se durante a noite, o uso de um casaco que nunca é tirado, etc. Depois de pouco mais de duzentas páginas encontramos esta confissão do segredo:
Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram.
Se com tudo isso ainda existe alguém que pode afirmar que a descoberta é decepcionante, que o escritor foi pouco ousado ou que o romance tem uma finalização ineficaz, sinceramente, a pessoa realmente não entendeu nada daquilo que Guimarães Rosa queria, nem perceberam de fato a grandiosidade da obra.
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