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23 agosto 2005

Artesanato das Palavras

Ao acabar de ler qualquer livro imagino o trabalho que deve ter dado para seu autor. Em alguns casos, fica aquela sensação de que o livro lido foi um livro 'fácil' de ser feito. Duvido muito que qualquer livro de qualidade publicado seja realmente um livro fácil de ser feito. Em muitos casos, como por exemplo Marcel Proust e Robert Musil, uma obra consumiu a vida inteira do autor. No caso de Musil e seu "O Homem Sem Qualidades", nem uma vida inteira foi o bastante para que este pudesse ser terminado. Mas é inevitável, alguns livros simplesmente possuem gosto de livro 'fácil'. Às vezes nem é a obra em si, mas somente alguns trechos que lemos e temos a sensação de que o autor se encheu de tudo aquilo e resolveu levá-la ao prelo do jeito que estava mesmo, sem dar muita importância às imperfeições claras. Num contraste, outras obras parece terem sido escritas por verdadeiros artesãos, perfeccionistas que nunca se cansavam de examinar cada detalhe de seu texto. E ao final, aparece uma obra que possui algo que os críticos costumam chamar de 'unidade', ou seja, todas as peças da composição se encaixam perfeitamente.

Osman Lins parece ser um desses perfeccionistas. Em duas de suas obras a sensação é de labuta para construção de textos com 'unidade': "Nove, Novena" e "Avalovara". Em "Nove, Novena", o destaque é o conto (ou seria uma novela?) "Retábulo de Santa Joana Carolina". O que se vê ali é um autor com uma obsessão em mente: eternizar sua personagem. Joana Carolina, personagem principal da história, é uma mulher que vive em condições precárias no interior do Nordeste. O tema em si não parece ser promissor para que o escritor tenha êxito em sua tarefa, afinal de contas, num país tão acostumado à pobreza, uma personagem com tais características poderia ser simplesmente mais uma personagem de um livro de Graciliano Ramos. No entanto, se o tema da história se aproxima dos livros regionalistas, a forma como o texto é montado nem de longe lembra-os. Em primeiro lugar a humilde Joana Carolina já no título é enaltecida como Santa Joana Carolina. O elemento religioso, portanto, é inserido para desde o início apontar a eternidade pretendida. O texto é dividido também em doze 'mistérios', onde em cada um há uma 'introdução', aparentemente sem nenhuma relação com o texto que se seguirá. Em cada parte, vemos elementos simbólicos que são misturados ao texto e que contribuirão para a eternização da personagem. Por exemplo, cada uma das partes remete a um signo zodíaco. Também existem sinais gráficos dentro do texto que têm um significado essencial - por exemplo, numa parte um círculo é utilizado para introduzir uma fala masculina, o triângulo, para a feminina e os dois juntos para se referir aos dois. Quanto às introduções, são brincadeiras com as palavras - e que há de mais apropriado para eternizar do que as palavras?


O resultado de tudo isso é ótimo, mas o que mais chama a atenção é o trabalho que o escritor parece ter tido. Principalmente, se o leitor prestar atenção apenas na 'estética' do texto, parece que houve um esforço para recriar a maneira de contar uma história. O que vemos no texto de Osman Lins é uma estrutura cuidadosa, montada dum modo que valoriza não somente o conteúdo do texto, mas a própria palavra. Para os leitores que valorizam a inventividade, Osman Lins é um prato cheio.

Em alguns casos, a literatura pode ser uma via de mão única. A literatura que o escritor faz nem sempre se aproxima da literatura que o leitor interpreta. O cuidadoso trabalho que observamos no texto de Osman Lins mostra que, antes de tudo, ele se preocupava em produzir uma literatura de mão dupla. O trabalho do escritor e o esforço de que nenhum leitor, por mais desatento, pudesse passar por seus textos sem sentir nada. Obviamente, escrever privilegiando esta característica, produz a sensação de que, como leitores, fomos levados em conta pelo escritor. E como leitores, agradecemos por esta preocupação.

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