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08 agosto 2005

Para Aqueles Que Apostaram nos Sonhos Errados

O costumeiro apostador de loterias sempre tem uma história para contar a respeito do prêmio que um dia ele quase ganhou. Aponta para os cartões enquanto afirma que se tivesse reunido os números corretos, que estão nos outros cartões, teria faturado a grana maravilhosa que mudaria toda a sua vida. E assim vai vivendo, com lembranças cada vez mais emocionantes de quase-prêmios cada vez mais volumosos. Dino Buzzati, ao escrever "O Deserto dos Tártaros", cria uma figura semelhante. A diferença é que o prêmio a ser conquistado é muito maior. Talvez por isso, ao finalizar a leitura de sua obra-prima, a sensação é de um desagradável esclarecimento. E se estivermos apostando nossa vida nos sonhos errados? Para muitos a lucidez vem muito tarde. Outros sequer chegam a avaliar se realmente fazem sua vida valer a pena. Transformam a rotina em modo de vida e o vislumbre por algo novo dá lugar ao sossego e a segurança de uma vida possíveis riscos.


Para os que estão tentando se arriscar em busca da felicidade, o livro de Buzzati causa um efeito profundo. No livro de Buzzati, o soldado Giovanni Drogo cumpre uma rotina entediante num forte quase abandonado, à espera de um possível ataque que nunca chega. Antes do fim de sua vida, porém, tudo parece mudar. Repentinamente, evidências de uma trama de ataque começam a aparecer, transformando a rotina do forte, em uma expectativa de glória e sucesso. O sonho de uma guerra sangrenta que poderia transformar uma vida insossa em uma aventura heróica começa a mover o pensamento e as ações dos membros do forte, como forma de driblar a rotina. Mas é somente isso. Como o cartão de loteria quase premiado que se dá esperança de um dia receber o grande prêmio.

O paralelo com o livro de Samuel Beckett, "Esperando Godot", é oportuno, embora este possa causar menos impacto. Na obra de Beckett, a capacidade de realização do sonho é transferido para outro, o Godot que nunca aparece. Todas as esperanças estão por vir num personagem que certamente terá a capacidade (e certamente fará!) de desfazer tudo que está errado na vida dos dois personagens principais, Estragon e Vladimir. Os dois mendigos então cumprem a rotina de esperar. O efeito mais inquietante da obra de Buzatti se deve justamente ao fato de que o soldado Drogo não transfere sua responsabilidade a outro. O modo como conduz sua vida e a expectativa de que um dia haverá de fato uma guerra, não é um sonho tomado de outra pessoa. Ele mesmo constrói sua esperança baseada nesta expectativa de uma guerra futura, isolando o presente. Mesmo quando tem a oportunidade de retomar um antigo amor e abandonar tudo, ele prefere não fazê-lo. E assim sua vida passa.

O livro de Buzzati tem a capacidade de nos fazer refletir nas nossas próprias expectativas e sonhos. Nos faz ver que ao nosso redor são muitos os Drogos que esperam pela grande chance de suas vidas e vão continuar esperando, num eterno lamento. Embora possa transmitir uma certa melancolia, quando findamos a leitura sentimo-nos bem. Há uma grande vontade de avaliarmos nossas próprias expectativas e traçarmos nossos caminhos de um modo mais realista. E para aqueles que apostaram nos sonhos errados, o livro significa um grande sinal de alerta, que poderá servir para um desvio radical da rota de colisão. Basta abandonar os velhos bilhetes premiados e se apegar as verdadeiras apostas que garantirão a felicidade.
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