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21 setembro 2005

Baralho de Palavras

Um amigo, jogador de truco (um jogo de baralho muito conhecido aqui em Minas), diz que o segredo de um bom jogador não é saber blefar e sim saber embaralhar as cartas. Segundo ele, a principal preocupação de quem embaralha as cartas deve ser não apenas fazer com que as melhores cartas cheguem até suas mãos, mas também fazer com que os outros não recebam cartas que poderão servir de contra-ataque. Aliás, o principal motivo de muitos bons jogadores perderem partidas supostamente fáceis é imaginar que as outras boas cartas não estão nas mãos dos adversários. Note que o jogador apenas conseguirá saber se o modo de embaralhar as cartas foi o correto após as cartas terem sido lançadas. Confiar no seu modo de embaralhar as cartas, portanto, é sempre um risco.

Você já deve ter lido um livro assim: começo promissor, meio muito bom, fim correto. Tudo de forma bem linear. Livros que podem ser bons, mas que em sua grande maioria são simplesmente livros comuns. Alguns escritores, em maior ou menor grau, resolveram jogar fora a linearidade da história, colocando assim um ingrediente que atrai o leitor ávido por algo novo. A não-linearidade da história certamente traz alguns benefícios. Primeiramente, desperta a curiosidade do leitor. Afinal, quando fatos aparentemente sem nenhuma conexão começam a ser apresentados pelas páginas de uma obra, somos levados a nos perguntar onde tudo aquilo vai parar. Depois, quando bem feito, é algo que agrada ao leitor. O escritor delega a tarefa de montagem da história ao leitor, que começa a fazer ligações, tenta ordenar o caos das palavras e descobre fatos curiosos entre um personagem e outro. Mas é sempre um risco.

Talvez ao começar a ler este texto, você logo tenha se lembrado de "Conversa na Catedral" de Mario Vargas Llosa. O livro é um grande baralho, onde os personagens e os fatos que acontecem no Peru durante sua ditadura militar, são como cartas. Ora estamos lendo sobre as 'coronelices' constituídas para efetivar o poder existente através da força, ora observamos Santiago, o personagem principal, tentar traduzir seu passado e descobrir onde errou, ora passeamos pela vida dos personagens 'menores' da trama. Mas a ênfase parece ser sempre no modo como todas estas cartas estão sendo embaralhadas pelo escritor. Às vezes de modo bem cansativo - em uns capítulos, frases de vários personagens são intercaladas, de modo que não há ritmo -, em outras ocasiões de modo bem inteligente - percebemos que fatos se iniciam de modo a parecer que há uma oposição com os fatos narrados anteriormente, embora estes não tenham nenhuma relação entre si. O livro também possui quatro partes que estão muito bem embaralhadas. A primeira parte parece ser a mais linear, por mostrar o encontro casual de Santiago e o Ambrosio, que gera uma conversa (a do título) que abre espaço para que os fatos do passado possam ser relembrados pelos personagens. Mas é também a mais embaralhada. Precisamos de algum tempo para nos acostumarmos com a forma do escritor nos apresentar sua história.


Considero o livro um bom exemplo de mistura de histórias e personagens, por sua ousadia na estrutura, mas certamente fica abaixo de um livro que considero a obra-prima deste tipo de experimento: "A Colméia", de Camilo José Cela. A obra de Cela é um pouco menos embaralhada em sua estrutura, mas muito mais através de seus personagens. Na obra de Llosa, há sempre uma linha bem nítida que liga um personagem ao outro, mas a obra de Cela é radicalmente arriscada porque esta linha é bem fina, às vezes quase imperceptível. Personagens vão desaparecendo, outros vão entrando, mas nunca sentimos que o escritor perdeu o foco da sua narrativa. Esta independência dos personagens transforma o leitor em um voyeur, que passa os olhos por uma antiga Madri, numa sensação nostálgica. Um baralho de palavras montado para despertar nossa atenção, procurando detalhes e explicações sobre um personagem em outro. Um jogo que cada leitor executa com seus olhos e sempre ganha por jogá-lo.

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