Literatura Feita de Duplos
Imagine que você fosse um autor e quisesse escrever um livro que fosse impossível de ser interpretado de duas maneiras diferentes. A única interpretação possível é a que o próprio autor quisesse e ponto final. A primeira vista parece algo simples, literatura pobre, dessas bem chinfrins vendidas em bancas. Pensar assim, porém, é imaginar a questão de modo limitado. Do momento em que o autor transforma uma página em branco em algo escrito, ele imediatamente se prende a alguns limites. O maior deles é o limite da interpretação de cada leitor. Um livro sempre é feito por duas vias. Se é escrito e publicado, mas não é lido, é apenas um item de decoração que não nos diz nada. Escrever é, de um modo muitas vezes involuntário, renunciar a liberdade. O autor entrega sua obra ao leitor e leitor (não alguém individualmente, mas o 'leitor' coletivo) é que dá alguma interpretação à obra. Por mais que o autor queira que sua obra seja vista de determinada maneira, são seus leitores que apontam a seta para algum caminho e ele pode fazer pouco, pode induzi-lo e torcer para que seu induzimento funcione. O livro, após publicado, segue uma vida própria, um caminho independente. A palavra carrega consigo por natureza a dualidade. Escreveu Octavio Paz certa vez que "não há princípio, não há palavra original, cada uma é metáfora de outra palavra que é uma metáfora de outra e assim sucessivamente". Por isso, tal proposta de uma obra literária de interpretação única é uma ilusão. Se tivéssemos que definir a literatura com apenas uma palavra, ela seria 'dualidade'. Nada é como parece ser.
Observem, sobre isso, o exemplo de Ernest Hemingway. Hemingway é conhecido por seu estilo econômico, que valoriza verbos e substantivos, em detrimento aos adjetivos. Sua intenção era a valorização da palavra, que segundo seu ponto de vista, tinha sido desvirtuada devido aos 'excessos de sentimentalismos'. Tal esforço, numa primeira análise, talvez faria surgir obras pouco dúbias, um pouco mais 'literais', semelhante aos escritores de notícias dos jornais - Hemingway, aliás, no início de sua carreira, escreveu para o jornal Kansas City Star. Mas, daí entra o leitor e suas interpretações. E o resultado? Bem, obras como "O Velho e o Mar" figuram entre as mais cheias de resenhas explicativas, com um grande número de explicações possíveis sobre supostos simbolismos. Isso tudo apesar da definição que o autor dá aos supostos simbolismos:
"There isn't any symbolism. The sea is the sea. The old man is an old man. The boy is a boy and the fish is a fish. The shark are all sharks no better and no worse. All the symbolism that people say is shit. What goes beyond is what you see beyond when you know."
O dualismo de "O Velho e o Mar" já começa no título e a interpretação da história é sempre subjetiva. Alguns críticos vêem ali elementos religiosos, outros falam sobre influências da filosofia de Nietzsche, enquanto outros juram ter visto ali a psicanálise de Freud. Vejo ali um relato extraordinário de vitória do ser humano contra todos os desafios, desafios muitas vezes imprevisíveis. Mas, ele pode ser lido também como um grande relato sobre a derrota humana. Parece incrível o paradoxo, mas é assim o livro. Uma bússola que aponta para o norte e para o sul ao mesmo tempo. Otimismo e pessimismo perfeitamente misturados, ao ponto de nunca sabermos exatamente o que prevalece.
Hoje também é comum críticos citarem uma série de defeitos que fazem deste um livro 'menor' de Hemingway. Mas a obra é de fato grande também por suas imperfeições. Alguns acusam Hemingway de criar uma obra com excessos de sentimentalismos - justamente aquilo que o autor tanto criticava. Outros vêm o personagem Santiago excessivamente artificial, um estereótipo. Ou seja, uma obra tão cheia de duplos, que faz com que até mesmo os críticos não consigam entrar em consenso sobre suas falhas. Um livro feito para nos mostrar algo concreto e nos enganar ao mesmo tempo com algo fantasioso. E como é gostoso para um verdadeiro leitor ser perfeitamente enganado por um bom livro.
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