O que é qualidade literária? - Parte II
Um conto de Jorge Luis Borges, cujo título é "Pierre Ménard, Autor de Quixote" fala sobre um escritor do século XIX que escreve um livro exatamente igual ao clássico "Dom Quixote" de Miguel de Cervantes. A avaliação das duas obras, no entanto, é bem diferente. Na história, um crítico exalta a obra de Pierre Ménard como superior à do autor espanhol, sendo "mais sutil e infinitamente mais rico que o [Dom Quixote] de Cervantes". Embora pareça uma declaração absurda, o que o crítico faz no conto é analisar o contexto histórico em que as duas obras estão inseridas, o que nos ensina algo muito importante: o valor de uma obra se relaciona com o período em que ela é escrita.
Um bom exemplo da relação entre fatos históricos e uma obra literária é "A Revolução dos Bichos" de George Orwell. Um leitor que não souber nada a respeito da história da Revolução Russa e seus principais personagens, lerão o relato como uma fábula sobre a exploração causada pelo mau uso do poder político. No entanto, os leitores familiarizados com os eventos históricos da Revolução poderão relacioná-los ao relato e perceber que se trata de uma sátira aos ideais desta Revolução. Marx, Stálin, Trotski, Alexei Stakhanov são caricaturados nas ações e decisões tomadas pelos bichos no livro.
Naturalmente isso não significa que o valor de uma obra literária está vinculado somente ao seu conteúdo histórico, político ou social. Isso porque se uma obra se sustentar apenas por suas relações históricas provavelmente perderá seu valor à medida que o tempo passar. Fatos que são bastante conhecidos no presente poderão se tornar referência apenas a historiadores no futuro e seria inimaginável um livro que viesse acompanhado de uma lista de obras históricas que deveriam ser consultadas para que o leitor tire pleno proveito da ficção. Sendo assim, é possível afirmar que o valor de uma obra literária está em justamente utilizar elementos do presente para transcendê-lo, fazendo o leitor adquirir através da arte um ponto de vista diferenciado. Posteriormente falarei mais sobre a condição revolucionária ou reacionária de uma obra, portanto, deixo o tema em aberto.
Em resumo, o leitor que desconhece o período em que foi escrito o livro poderá não compreender pontos importantes, que fará com que sua avaliação em relação à obra seja negativa. Pode ocorrer, por exemplo, de o leitor dizer que não entendeu nada de um romance, que foi escrito numa linguagem propositalmente cifrada, apenas sugerindo ações ao invés de afirmá-las, em razão de um cerceamento de liberdades promovido por um governo autoritário. E possivelmente seu valor estará em justamente o autor conseguir expor seu ponto de vista apesar das condições conflitantes.
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