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22 janeiro 2008

O que é qualidade literária? - Parte VIII

Recepção Estética e Recepção Crítica

"Ulisses" é um livro cuja porta encontra-se trancada, embora a chave possa ser facilmente apanhada debaixo do tapete. O segredo para o leitor é ter a chave para sua leitura: o título que remete à Odisséia de Homero. Sem ela a avaliação de se a obra é boa ou ruim estará ligada a diversas limitações, como já foi abordado nas partes anteriores. Pode-se dizer que a recepção estética da obra está diretamente ligada à sua compreensão intelectual. Entender os recursos utilizados por Joyce para tornar o dia comum de um sujeito comum algo semelhante ao mito clássico é que deslumbra o leitor, fazendo-o se divertir com a leitura. É algo como uma piada contada entre amigos, onde apenas os que conhecem o contexto da situação conseguem rir. Com isso em mente, podemos imaginar a enorme tarefa que era estar em 1922, com o livro recém-lançado nas mãos, e ter a responsabilidade de avaliá-lo. A mera abordagem de ponto de vista não seria suficiente para dizer o que havia ali. Era preciso formular hipóteses sobre o porquê de se escrever uma história daquela forma tão diferente. Somente a partir daí é que seria possível dizer o quão bem sucedido foi o autor em conquistar seu objetivo. Ou seja, era preciso responder as questões: essa obra é boa ou ruim? E por quê?


Para responder a estas questões é que Edmund Wilson, um crítico e leitor perspicaz, começou a remover camadas de relações culturais e literárias da obra, tal como um sujeito cavando em busca de um tesouro, em seu ensaio "James Joyce" publicado no livro "O Castelo de Axel". O primeiro passo foi confrontar o "Ulisses" com outras obras de James Joyce, algo como tentar entender aonde o escritor pretendia chegar, quais idéias eram recorrentes. Daí destacou para o leitor a importância de seguir a pista dada pelo título. Com todas as letras, Wilson disse em seu ensaio que a chave de Ulisses era sua relação com a Odisséia de Homero e didaticamente passou a relacionar cada evento de "Ulisses" a um evento correspondente da Odisséia. Mais do que forçar uma interpretação enviesada de algo sugerido, Wilson constrói sua avaliação com argumentos sólidos que são difíceis de serem falseados, dada a maneira clara com que aponta elementos semelhantes nas duas histórias. Somente após tudo isso é que Wilson passa a avaliar aquilo que leu. Mesmo demonstrando grande entusiasmo e reconhecendo as qualidades da obra de Joyce, aponta alguns defeitos, introduzindo a terceira parte do ensaio com a frase: "Não creio que Joyce tenha sido igualmente bem sucedido no tocante a todos os artifícios verbais de Ulisses..."

Bem, o que tudo isso tem a ver com o leitor? Significa que toda avaliação de uma obra literária necessariamente deve ser extensa e criteriosa como o ensaio de Wilson? Evidentemente que não. No entanto, o ensaio serve para exemplificar como leitores e críticos lêem de um modo diferente uma mesma obra e como, conseqüentemente, a visão de um leitor pode ser ampliada por conhecer dados que vão além da obra. A leitura feita por Wilson leva em conta uma série de elementos que tem por objetivo anular as limitações naturais de uma leitura. Wilson lê outras obras do mesmo autor, descobre fatos da vida do autor (como, por exemplo, as dificuldades que Joyce enfrentou para a publicação de seu primeiro livro "Dublinenses"), investiga hipóteses através da comparação de trechos entre a obra de Joyce e o clássico de Homero, elenca qualidades e defeitos, segundo suas percepções sobre a literatura, e, finalmente, reúne tudo isso para dizer até que ponto a leitura da obra é relevante. Numa parte do ensaio sentencia:

"O modo de Joyce manusear todo esse imenso material, seu método de dar forma ao livro, não encontra nenhum paralelo na ficção moderna. Os primeiros críticos de Ulysses consideraram-no, erroneamente, uma "fatia de vida", e objetaram que era fluido ou caótico demais. Não reconheceram um enredo porque não conseguiram reconhecer uma progressão; e o título não lhes disse nada."

Em outras palavras, Wilson procura ler além do óbvio.

Com base nessas informações e na leitura que Wilson faz de "Ulisses", o leitor comum não se concentrará mais em descobrir elementos básicos da obra - como, por exemplo, o porquê do título "Ulisses" se não há nenhum personagem com esse nome no enredo. Um painel geral com essas informações básicas permitirá ao leitor ter uma leitura mais prazerosa. É como alguém com um mapa nas mãos, se não houver referências ele terá que gastar um bom tempo tentando descobrir o nome das ruas, ao passo que se estas já estiverem impressas, poderá se concentrar somente em traçar o caminho que irá percorrer. Embora para muitos leitores mais experientes parte da graça está justamente em desvendar as pistas de uma obra, boa parte dos que abrem um livro gostam de possuir pelo menos uma mínima direção que poderão seguir e o ensaio de Wilson provê exatamente isso. São, portanto, um complemento à leitura. E, alicerçado por tais informações, o leitor poderá avaliar o livro muito mais além do mero "gostei" ou "não gostei". Ele conseguirá reconhecer exatamente o que gosta ou não gosta na obra. Por exemplo, muitos leitores dizem não gostar das camadas de significado existentes em "Ulisses", pois para eles, essas camadas são excessivamente herméticas e servem apenas para fazer solapar a literatura.

Para resumir, a valorização de um ponto de vista crítico é dada em virtude dos argumentos oferecidos. No exemplo do ensaio de Edmund Wilson, alguém pode até dizer que o livro de Joyce é ruim porque ele não faz nenhuma relação com a Odisséia, mas certamente ele terá bastante dificuldade em provar seu argumento, falseando as evidências de associações intencionais que Wilson aponta em seu ensaio. Também, um ponto de vista é valorizado não porque ele oferece uma interpretação da literatura, uma 'verdade', mas por causa da sua capacidade de ampliar horizontes, de fazer o leitor enxergar melhor alguns pontos, independente de se concordar ou não com a avaliação dada. Ao ler tal ponto de vista, o leitor não tem sua liberdade seqüestrada, mas adquire mais elementos para dizer exatamente o motivo de achar algo bom ou ruim.

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