O que é qualidade literária? - Parte V
Normalmente, quando se diz "texto literário", a idéia inicial é que a expressão se refere ao corpo de um texto. Elementos como títulos, epígrafes, imagens e notas muitas vezes são colocados em segundo plano e alguns leitores avançam sem dar muita atenção a estes elementos que também compõem um texto literário. Por isso alguns podem estranhar um conto como "Notas ao Pé da Página", do escritor Moacyr Scliar, que contém, além do título, somente notas. A ausência do corpo do texto serve para exemplificar como essa tradição de reconhecê-lo como veículo principal na transmissão de informações pode tornar o leitor desatento quanto à importância dos outros elementos. As notas do conto de Scliar induzem o leitor a imaginar a razão do que é apresentado e exemplificam bem como esses elementos podem conduzir o leitor a imaginar o que tratará o corpo do texto e, nas mãos de um escritor hábil, ludibriá-lo para criar uma sensação de surpresa quando os fatos são completamente revelados.
O deslocamento de significante para transformar um texto aparentemente simples em um texto que se expande em várias direções e, portanto, um texto muito mais interessante para o leitor, pode ser visto no capítulo "A Guerra" do segundo tomo de "O Continente", que compõe a obra "O Tempo e o Vento" de Erico Verissimo. Num capítulo anterior, chamado "A Teiniaguá", o leitor fixou sua atenção nos eventos que culminaram na morte do personagem Bolívar, filho de Bibiana, a matriarca da família Terra-Cambará, tornando-se mais uma vítima da rixa entre os Terra-Cambará e a família Amaral. O título "A Guerra" inicialmente induz o leitor a concluir, portanto, que se trata do desenrolar das ações a partir dali, talvez a vingança de um Terra-Cambará ou um novo ataque dos Amarais. Há ainda outro importante elemento a se destacar: o capítulo se inicia traçando um perfil da guerra do Paraguai e suas conseqüências para a cidade de Santa Fé, o que leva o leitor a concentrar sua curiosidade nesses eventos; num plano geral, a Guerra do Paraguai e o sofrimento que essa guerra causa aos soldados e suas famílias, e num plano local, os embates entre as duas famílias. Contrariando essa expectativa, no entanto, a narrativa vai cada vez mais se concentrando no sofrimento das mulheres de Santa Fé, diminuindo o cenário até que este se feche em torno do casarão dos Terra-Cambará, onde estão a matriarca Bibiana e a viúva de Bolívar, Luzia. O leitor avança as páginas e todos os eventos narrados estão ali ao ponto de o leitor se sentir exasperado pela sensação de que o narrador demora a chegar a seu objetivo. E daí o capítulo acaba, fazendo o leitor se perguntar "Mas onde está a guerra?". O deslocamento do título faz com que somente após o final da leitura, o leitor perceba que a guerra do título se refere ao combate entre a tradição, com a matriarca Bibiana impondo suas vontades em relação ao seu neto, que subjuga um novo modelo que vem aos poucos se tornando mais comum, representado por Luzia, uma mulher que odeio o campo e sonha em se mudar para a cidade. Em resumo, o que acontece ali é que o leitor é levado a imaginar que o texto falará de uma guerra no sentido literal, mas os eventos se referem a uma guerra no sentido figurativo. Não perceber esse deslocamento proposital é perder grande parte do texto.
Embora, conforme já mencionado, muitos leitores se acostumaram a não se importarem tanto com elementos além do corpo do texto, cada vez mais a contemporaneidade tem se utilizado desses recursos para fazer produzir mais sentidos num texto. Por exemplo, as fotos, como as que Bernardo Carvalho usa em "Nove Noites" ou W. G. Sebald em "Os Emigrantes", não tem o efeito de conferir certa autoridade à ficção? É como se o que foi ali narrado não se tratasse de uma invenção mas sim autobiografia, fazendo com que os leitores pouco acostumados a esses recursos se confundam.
O modo como o texto literário provoca diálogo com outros textos, afirmando-os ou negando-os, pode fazer com que um texto, que parece ser superficial, torne-se rico quando o leitor encontra a chave de ligação entre eles. Quando o poeta português Herberto Helder escreve um verso ("Transforma-se o amador.") que lembra Camões ("Transforma-se o amador na cousa amada,"), ele faz muito mais do que usar palavras de uma tradição literária. O verso põe em xeque conceitos estabelecidos por essa tradição literária - o amor cortês e o platonismo -, atualizando-os. Para que o leitor se atente a isso, muitas vezes o texto literário possui pistas que foram colocadas nesses elementos fora do corpo do texto. Se ao iniciar um livro, o leitor encontra uma citação a alguma obra de Machado de Assis, por exemplo, provavelmente dentro do texto ele encontrará questões que objetivam novamente trazer à baila temas abordados pelo autor. Ou, se o título de uma obra recente remete a outra clássica – por exemplo "Bartleby & Companhia" de Enrique Vila-Matas e "Bartleby, o Escrivão" de Herman Melville -, sem dúvida um conhecimento da segunda pode proporcionar uma melhor compreensão da primeira. E ainda, se um personagem possui características de um outro ou o mesmo personagem aparece em duas obras diferentes – Machado de Assis, por exemplo, coloca o personagem Quincas Borba nas obras "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quicas Borba" – o conhecimento da relação entre os personagens ou entre as obras certamente é um ponto que pode levar o leitor a uma melhor compreensão do texto, derivando assim mais prazer em sua leitura.
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