O que é qualidade literária? - Parte VI
Algo comum é ouvir alguém contar que leu um best-seller, achou-o um dos melhores livros já publicado e por isso foi procurar outro livro do mesmo autor, mas se decepcionou ao descobrir, dada a similaridade das duas obras, existe ali uma 'fórmula' com o objetivo de fabricar emoções. O caso é que, para o leitor atento, à medida que ganha mais experiência por ler um número maior e mais diverso de obras, perceber alguns recursos comuns utilizados pelo escritor se torna algo comum. Em maior ou menor grau, utilizar eficientemente recursos textuais é determinante para atrair o leitor. E da mesma maneira, a repetição de uma mesma fórmula vez após vez, como no caso dos livros best-sellers, faz com que o leitor mais experiente os ignore. Tais leitores buscarão autores que utilizam desses mesmos recursos de um modo diferente e surpreendente. Abaixo, estão relacionados três recursos para exemplificar como estes afetam a leitura de um livro:
1 – Estrutura das frases
Para acelerar o ritmo da leitura ou diminuí-lo, o autor trabalha as frases segundo suas necessidades. Por exemplo, uma frase estruturada na ordem sujeito, verbo e objeto é muito mais fácil de ser decodificada pelo leitor por ser o modo como o falante do português formula seu pensamento. Além disso, orações mais longas são naturalmente mais difíceis de ser decodificadas que frases curtas e diretas. Observe o efeito de tais recursos no trecho abaixo do livro "O Encontro Marcado", de Fernando Sabino. O narrador utiliza frases curtas e diretas, fazendo com que o leitor acelere o ritmo de leitura, o que resulta num efeito de aceleração do tempo na história:
"Ouvia-se novo apito do juiz. Outra vez a assistência silenciava, em suspenso, e os nadadores se enrijeciam como estátuas, curvados e tensos. Um tiro, e todos se atiravam para a frente, a água estilhaçava.
Quebrou vários récordes, foi ao Rio e a São Paulo competir com os maiores nadadores nacionais. Vivia para natação: dormia cedo, alimentava-se bem, fazia ginástica."
Num segundo exemplo, da obra "A Morte de Virgílio" de Hermann Broch, o autor quer que o leitor tenha a mesma sensação do narrador que se recorda de eventos por causa de uma frase. Em apenas um instante, quando o narrador ouve a frase, vem-lhe à mente uma série de eventos e logo depois ele ‘retorna’ do pensamento e observa as ações ao seu redor, produzindo um efeito de expansão no tempo psicológico:
" - Sim, é tarde... Vai à festa!
De repente, setia-se excessivamente velho; anseios exclusivamente terrenos manifestavam-se com a necessidade de cochilar e dormir, com o desejo de poder mergulhar na inconsciência e de esquecer-se do nunca-mais, manifestavam-se através de uma debilidade do maxilar inferior e ainda de uma irritação tão violenta da garganta que o anelo de estar sozinho, inobservado, tornou-se irresistível:
- Vai!... Vai à festa!"
2 – Clímax e Anticlímax
Em muitas obras (principalmente nos contos), o autor procura cativar o leitor fazendo crescer gradualmente sua expectativa até o ponto em que ele o surpreende com a realização de alguma ação ou o frustra com a certeza de que, apesar das promessas do texto, nada de novo ocorrerá. Num romance, o enredo pode ser estruturado dum modo a possuir vários desses pontos que criam ora um clímax, ora um anticlímax. Quanto menos perceptível a manipulação feita pelo autor, melhor o efeito para o leitor. Como um exercício comparativo, leia os contos “A Cartomante” e “Missa do Galo” de Machado de Assis e observe como o autor utiliza os dois recursos para manipular o leitor.
3 – Diálogos
Contar uma história envolve decidir em que ponto o leitor será informado sobre algo, como se dará e por quem. O modo mais simples de narrar é utilizar o narrador onisciente em primeira pessoa, ou seja, fazer com que alguém deponha sobre o que viu, mesmo que fosse impossível para ele saber o que relata. Um exemplo disso é o narrador que fala sobre os pensamentos, sentimentos e sensações de todos os personagens de uma história. Já que se sabe que nem a mais atenta testemunha é capaz de saber exatamente o que outra pessoa pensa, o autor faz com que o próprio personagem diga aquilo que o leitor precisa saber, mas que seria muito ruim se fosse dito pelo narrador. Uma das melhores ferramentas para isso é o diálogo entre dois personagens, mas, ao mesmo tempo, esta pode se tornar uma armadilha. Forçar um diálogo ao ponto do leitor se assustar e perguntar "mas o que isso faz aqui?" pode estragar todo um romance e fazer o leitor desistir de sua leitura. A expressão em inglês "As You Know Bob" designa aqueles diálogos improváveis que não são motivados pelo enredo, mas apenas colocados num determinado ponto com o objetivo de costurar as ações.
Um exemplo de como um diálogo pode ser poderoso para transmitir informações sobre um personagem, sem que o narrador se envolva está abaixo, retirado da obra "Machenka" de Vladimir Nabokov:
"Ganin olhou para os pés e disse:"Quando eu estava nas últimas séries, meus colegas pensavam que eu tinha uma amante. E que amante - uma senhora da alta sociedade! Me respeitavam por causa disso. E nem protestava, porque fui eu mesmo que fiz circular a história".
"Compreendo", disse Podtiagin concordando com a cabeça. "Você é bem esperto, Liovuchka. Gosto disso."
"Na verdade, eu era absolutamente casto e nem me aborrecia com isso. Tinha orgulho de ser assim, como se guardasse um segredo especial, embora todo mundo pensasse que eu era muito experiente. Veja bem, certamente não era pudico nem tímido. Simplesmente me sentia feliz vivendo como vivia, tratando de esperar. E meus colegas, os que diziam palavrões e se babavam só de falar a palavra 'mulher', eram todos tão sujos e cheios de espinhas, as palmas das mãos sempre úmidas. Sentia nojo deles por causa das espinhas. E mentiam deslavadamente sobre suas aventuras amorosas.""
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