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16 maio 2005

Os Dois "Dom Quixote"

Existem dois "Dom Quixote". Um é a história de um homem 'com o espírito de um lutador que viveu para combater as injustiças e consertar o mundo', segundo a definição de Hugo Chávez. Este incita os leitores a luta, torna-os capazes de qualquer coisa, mesmo que metaforicamente isto represente uma luta contra moinhos de vento. Nunca li este, mas creio que sua leitura seja muito chata. O outro, o que eu li, é a história de um personagem apaixonado por livros, tão apaixonado que resolve transformar a fantasia em realidade. Aí ele passa a participar de uma bobagem atrás da outra, dando a prova de que livros não servem para nada. Livros só servem para serem lidos. Alguns, talvez, para decorar estantes. Só. Toda vez que você ouvir alguém dizendo que o mundo pode ser consertado e para isso basta ler um livro, pode estar certo de que esta pessoa não sabe o que é um livro, muito menos um livro que tem 400 anos de vida.

Atribuir poderes mágicos a um livro é algo bem estúpido. O tempo que se gasta lendo ou assistindo televisão tem o mesmo valor. Não adianta tentar provar que um livro faz isso ou aquilo, o livro não tem poder para fazer nada. É só um amontoado de palavras impressas. Quando a pessoa quer ver a realidade através da leitura, a única coisa que ela consegue é desviar seus olhos para o que está a sua frente. E um livro clássico como "Dom Quixote", é clássico justamente por isso, por ser apenas arte. A paródia que Cervantes escreve, esculhambando os livros de cavalaria que era lidos na época e admirados, deveria deixar claro tudo isso aos leitores do primeiro "Dom Quixote". Mas como o próprio personagem principal da obra, esses leitores insistem em atribuir realidade à fantasia, distorcendo tudo à sua volta e fazendo um papelão perante todos.

A paródia escrita por Cervantes tem também outra grande característica: ele é um livro que homenageia o leitor. Borges, um grande leitor de "Dom Quixote", afirmava que Cervantes era também um grande leitor, daqueles que lêem até papéis rabiscados que são encontrados no meio da rua. Dessa forma, nada tão próximo de si mesmo do que um personagem que enlouquece por causa do que leu. E à medida que lemos a obra, personagem e escritor vão se aproximando com base num ponto em comum: ambos tiram grande prazer na leitura. Quixote cita Cervantes (na primeira parte, no capítulo XL, até o nome "Saavedra" é citado) e Cervantes incorpora o Quixote (na segunda parte, onde os protagonistas do Quixote são também leitores da primeira parte). Portanto, se tivesse que separar um livro que falasse dessa antiga paixão que é a leitura, esse livro seria "Dom Quixote".
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