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05 maio 2005

Contos da Era da Informação I - A Descoberta do Outro (em Palavras)

Não se lembrava de como ele havia parado ali. Na verdade não se lembrava de quase nada da noite anterior. Passeio no shopping, alguns chopes, papo furado, ela começa a falar sobre alguns autores, o papo vai esquentando, até que vem a decisão de ir à livraria mais próxima. Apanhou alguns exemplares novos, ela falando sobre Deleuze e Foucault, sacou o cartão de crédito e depois não se lembrava de mais nada. Foi o álcool, com certeza. Como ia denunciar-se assim, irracionalmente? Foi uma bela sabatina pelas prateleiras. Sabia que havia coletado vários exemplares enquanto discutia a estética da obra de Borges. Como não vira que havia apanhado logo aquele autor? Não poderia ser distração. Talvez o engano se deveu justamente por isso... claro! Selecionou um Borges e como o nome é parecido (talvez estivesse ao lado), ele foi comprado por engano. Agora estava ali, sendo exposto na sua estante, quase gritando para chamar atenção. Não, não foi isso. A vendedora ficou tentando empurrar aquelas novidades que ficam na primeira prateleira. Sim, ela havia falado algo sobre um tal livro perturbador. 'Perturbador' foi essa a palavra usada. Uma pessoa que te recomenda um livro porque ele é perturbador merece ser condenada. Prisão perpétua. Ao me virar para apanhar um livro ela deve ter enfiado ele no meio da pilha. Aquela vendedora tem cara dessaszinhas que entram na sua frente num sebo e pegam o livro que você iria pegar e depois saem com um sorriso de um lado a outro do rosto. Às vezes até comentam no caixa que 'procurou aquele livro durante anos', só para te aborrecer ainda mais. Ah mas se eu voltar lá! Foi ela sim. Sabia que minha reputação estaria manchada para sempre e por isso o fez. Agora precisava ser rápido, antes que ela acordasse. Apanharia o livro e o jogaria na lixeira. Não, não, ela poderia abri-la e aí tudo estaria terminado. Ela sempre tinha aquela mania idiota de tirar o miolo do pão e depois jogaria tudo fora, obviamente. Iria abrir a lixeira e pronto! Seria descoberto. Precisava pensar em um lugar secreto. Onde deveria escondê-lo? Se ele não tivesse aquela capa berrante que aparece até no escuro, poderia deixá-lo jogado no cesto de revistas. Ela nunca lia revistas, odiava revistas. Era, portanto, o lugar ideal. Mas, com aquela capa ia ser impossível. Droga, um barulho! Ela deve estar acordando! Poderia colocá-lo em seu armário, ela nunca iria abri-lo. Mas e se ela acordasse com o barulho? Precisava ser rápido. Aonde havia uma sacola? Isso, ensacolá-lo e enfiá-lo no meio da roupas. Onde havia deixado as sacolas da loja daquela vendedora terrorista. Terrorismo, isso! O que ela fez está até na moda. Escolhem um cara qualquer, inocente, e destroém a vida dele. Lutam pela democratização do ensino, li isso num jornal outro dia. Cadê a maldita sacola, droga?!? Ali, ali, pronto, tudo ok agora, é só me acalmar um pouco e...

- O que é isto aí na sacola?
- Ãhn?!? O quê?
- O QUE É ISTO AÍ NA SACOLA?
- Umas coisas que eu tô juntando aqui...

Ela avança sobre ele, toma-lhe a sacola, abre-a e retira o livro.

- Eu posso explicar é que...
- PODE EXPLICAR?!? PODE?!?

Ele tenta encontrar palavras, formular uma frase de efeito pra tentar desviar a atenção dela.

- SEU... SEU... SEU EGOÍSTA!!! Gritou ela descontrolada.
- Você é sempre assim, é só eu comprar um livro qualquer que você quer ler antes que eu!!! Não bastava aquela pilha que você comprou ontem, né??? Não, você não pode ler os seus, você tem que apanhar os meus, né??? Sabia que você ia inventar alguma coisa, mas escondê-lo de mim é muita cara-de-pau hein??? Pois pra mim chega!!! CHEGA!!! Estou cansada do seu intelectualismo niilista!!!

Enquanto ela batia a porta chorando, ele sorria aliviado - estava tudo bem afinal.

Para Karine
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