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16 junho 2005

Bloomsday Pela Net IV

O Bruno Garschagen, que também deverá estar na Livraria Travessa mais tarde, publicou no Vertigem uma entrevista com Bernadina Pinheiro, a tradutora de "Ulisses" que está sendo lançada hoje, pela editora Objetiva. Com a permissão do Bruno, aí está o texto:

O retorno de Ulisses

Edmund Wilson, no clássico ensaio para o livro “Castelo de Axel”, observou que com “Ulisses, James Joyce trouxe à literatura uma nova e desconhecida beleza”. O escritor irlandês, para Wilson, era o grande poeta de uma nova fase da consciência humana. Vários são os ensaios e livros que tentam explicar “Ulisses”, a obra-prima de Joyce. O leitor brasileiro que não lê em inglês ficou quase quatro décadas limitado à tradução do filólogo Antonio Houaiss, que fez uma versão intelectualizada e dura, bastante criticada e nada sedutora.
O simples anúncio de uma nova tradução da obra ouriçou os fãs de Joyce e abre uma janela para os que se recusavam a enfrentar a tradução de Houaiss. Lançada pela editora Objetiva, a nova versão traz a assinatura de Bernadina Pinheiro, professora aposentada do curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e apaixonada por Joyce. Embora não viva de traduções, Bernardina já verteu para o português “Retrato do artista quando jovem” (Siciliano), de Joyce, “Uma viagem sentimental”, de Sterne, e planeja traduzir William Faulkner (a obra não foi definida).
De seu apartamento em Copacabana, Bernardina, aos 83 anos, falou como se aproximou das obras do escritor irlandês, por que decidiu traduzir “Ulisses” e como foi o processo de verter o livro para o português, cuja principal preocupação era manter a coloquialidade da prosa joyceana, inexistente na tradução de Houaiss, que para muitos precisava ser traduzida.

O que levou a senhora a se lançar na tradução?
Bernardina - Comecei a traduzir “Ulisses” por prazer. Depois da minha pesquisa de doutorado, fiquei tão fascinada com o monólogo da Molly Bloom que resolvi traduzi-lo. Isso foi em 1999.
Minha ligação com Joyce começou com minha tese de livre-docência em literatura inglesa em 1974. Fui levada pelo poeta britânico Gerard Manley Hopkins, que tem uma linguagem muito especial, um enfoque ético completamente diferente do século XIX. Hopkins explorou muito o aspecto semântico da língua. Minha tese era sobre a densidade semântica em sua poesia.
Hopkins trabalha com o escopo íntimo e Joyce com epifanias. Comparei os dois por causa da revelação da coisa íntima.
Em 1986, fiquei sete meses em Londres cursando o pós-doutorado na University College. Minha pesquisa era sobre “Ulisses”. Me propus a fazer uma análise do grau de sentimento de culpa dos três personagens principais, Stephen Dedalus, Leopold e Molly Bloom. Além de Londres, fiquei uma semana em Dublin, fazendo a jornada de Leopold.

- Que tipo de preocupação estética e estilística a senhora teve enquanto traduzia?
Bernardina - A tradução nunca é perfeita. Você não pode transferir de uma língua para outra toda a sutileza, todas características que são próprias de cada língua. Há coisas quase impossíveis de se traduzir. Há algo usadíssimo por Shakespeare, e muita usado por Joyce e por muitos outros escritores ingleses, que é o pun, trocadilho. É muito difícil adaptar isso para o português. Quando não consegui fazer a adaptação, procurei utilizar um outro elemento da língua inglesa que é a aliteração: a repetição de sons, repetição de consoantes iniciais. Procurei explorar a parte de som, que é muito importante para Joyce. O som, por exemplo, é muito importante no “Retrato do artista quando jovem”, um poema em prosa.
Em “Ulisses”, foi mais difícil fazer a adaptação do som da língua anglo-saxônica por não ser tão marcante quanto em “Retrato...”. O que eu procurei fazer foi mais em termos de buscar sonoridade, o ritmo, porque o ritmo é diferente nos três monólogos. Cada um tem seu ritmo próprio. Quase que um perfil da personalidade de cada um dos personagens através do ritmo.
As maiores dificuldades que tive foram com a variação de estilos nos capítulos de “Ulisses”. Os capítulos 12 e 14 têm uma variedade muito rica. Pega desde a literatura anglo-saxônica medieval até o pidgin english — mistura de dialetos e gírias. Para verter a prosa de Joyce de uma maneira mais aproximada possível do original utilizei a linguagem do homem da zona rural brasileira.

- Quais edições a senhora usou na tradução?
Bernardina - Usei a edição “Ulysses, The Corrected Text” (London: Penguin Books, 1986), de Hans Walter Gabler. Como ponto de apoio em algumas consultas, usei a edição francesa traduzida por Auguste Morel, revisada por Valéry Larbaud e depois novamente revisada por uma equipe comanda por Jacques Aubert, um especialista em Joyce.

- Houve alguma preocupação em manter a coloquialidade dos diálogos levando em consideração a língua falada pelos dublinenses na época ou a senhora preferiu atualizar as frases e expressões do romance?
Bernardina - Procurei usar uma linguagem coloquial no texto, não uma linguagem rebuscada. Joyce usa uma linguagem bastante coloquial. Não usei muitas gírias. Procurei usar certas expressões como se fossem nossas. A linguagem coloquial não varia tanto de uma época para outra. As gírias sim. Reproduzi o mais fielmente possível o que Joyce pensava, o que ele escreveu.
A língua inglesa é muito rica, metricamente falando. Joyce pôde variar muito os termos e ao mesmo tempo procurar aqueles que tinham uma sonoridade que melhor se adaptasse em certos momentos ao texto. Nós não dispomos da mesma riqueza vocabular. Eles têm um componente muito grande de palavras anglo-saxônicas e latinas. Em termos de som e de ritmo é uma coisa fantástica. As palavras anglo-saxônicas são predominantemente monossilábicas enquanto que as palavras de origem latina são mais longas. O ritmo da linguagem de Stephen, que é mais filosófico, é mais lento, as palavras mais longas. O ritmo de Bloom, que é prático, objetivo, imediato, é quase stacatto, com frases muito curtas, comendo sílabas. Procurei reproduzir isso em português.

- Quanto tempo a senhora levou para traduzir?
Bernardina – Comecei a traduzir, como já disse, em 1999, mas sem a pretensão de publicá-la. Terminei no início de 2004, já com o acordo com a editora Objetiva. Foram feitas cinco revisões, duas delas por minha sobrinha, professora de inglês.

- E o convite para publicar?
Bernardina - Tudo começou no Bloomsday de 1999, após a leitura de trechos que eu havia traduzido e que foi distribuído para os que estavam presentes. E editora da Ediouro na época, Maria Angela Villela, minha aluna num curso em que fazíamos leituras de Joyce, perguntou se eu aceitaria o desafio de traduzir a obra. Me empolguei na hora e aceitei.
Passado algum tempo, as negociações com o detentor dos direitos da obra (Stephen Joyce, neto do escritor) se tornaram difíceis e a Ediouro desistiu do projeto. Depois fui sondada pela Nova Aguilar (novamente pelas mãos de Maria Angela Villela), mas a conversa não prosperou. Continuei traduzindo os capítulos do livro para ajudar no curso. Assim, eu ia adiantando a tradução.
Em 2001, houve um contato com a Objetiva, que se interessou pela tradução. Continuei traduzindo, mas novamente houve empecilhos com o detentor dos direitos da obra. Na FLIP de 2004, houve uma palestra do escritor irlandês Colm Tóibín sobre “Ulisses” e a leitura de trechos de minha tradução pelo poeta Antonio Cícero e pela atriz Regina Braga. Depois disso, o editor Roberto Feith entrou em contato comigo para definir a publicação.

- Ulisses foi proibido em alguns países sob acusação de ser obsceno. A senhora acha que a nova tradução poderá realçar esses aspectos que chocaram na época e ficaram escondidos na tradução dura de Houaiss?
Bernardina - Não, não, isso foi uma coisa da época. O que foi considerado quando Joyce publicou Ulisses já não deve chocar mais ninguém.

- E do ponto de vista da forma, a nova tradução poderá apresentar o vigor e causar o impacto da prosa original de Joyce?
Bernardina - Espero que eu tenha conseguido isso.
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