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01 fevereiro 2005

A História de um Homem Mau

Svidrigáilov é um dos meus personagens preferidos. Em "Crime e Castigo", Dostoiévski mostra-nos a maldade sobre vários aspectos, mas Svidrigáilov é "o" homem mau, daqueles que pegam criancinhas pra fazer mingau. Os capítulos 5 e 6 da sexta parte de "Crime e Castigo" são essenciais para se conhecer sua personalidade. Somente Raskolnikov é tratado com tanta intimidade durante o romance, mas em minha opinião nunca com a "classe" de Svidrigáilov. O capítulo 5 é um primor. Tenho uma versão de "Crime e Castigo" (da Nova Cultural, daquelas de banca) que não dá sequer a idéia do impacto que é a leitura no russo. Transcrevo o diálogo final da minha versão abaixo:

- Deixa-me! - disse Dúnia implorante. Svidrigáilov estremeceu; aquele "tu" foi pronunciado de maneira diferente do anterior.
- Então não me queres? - perguntou-lhe com medo. Dúnia moveu negativamente a cabeça.
- E... não poderás? Nunca? - balbuciou ele com desespero.
- Nunca! - murmurou Dúnia.


O problema para nós brasileiros e leitores do português é que sequer existe algum "tu" na frase, muito menos um "tu" diferente. Como gato escaldado tem medo da água fria, supus logo que havia alguma coisa de errado com a tradução ou havia algum sentido oculto no russo original, que no português não se consegue transmitir. Não há nenhuma nota, mas pelo restante do romance dá para perceber que alguma coisa realmente muito importante estava contida neste trecho.

Procurei saber e descobri o que era: no russo existem duas formas de pronome possessivo, semelhante ao português que possui "tu" e "você". Geralmente se usa uma das formas, uma forma "comum" ou "geral" e esta foi utilizada durante todo o capítulo. No entanto, exatamente neste ponto, a forma de tratamento muda. A outra forma de tratamento é utilizada somente com familiares e amigos íntimos. Por isso, o efeito da mudança no russo causa um impacto que no português é impossível, sugerindo uma relação íntima entre os dois e criando assim uma ambigüidade incrível. Dúnia está dizendo um "não", mas está sugerindo um "sim". Esse frase transforma a personagem numa das mais intrigantes e misteriosas do romance. Sugere assim que ela seria uma espécie de redentora (mais uma vez a imagem religiosa aparece e Dúnia seria como Cristo) e Svidrigailov não conseguiria escapar de uma redenção.

Aí é que o verdadeiro cara mau se concretiza: entre Svidrigáilov se converter e se redimir ou ele meter uma bala na cabeça, ele escolhe a última opção. Como que num espelho, Svidrigáilov se vê capaz de desenvolver sentimentos nobres, mas ele se recusa. O que motiva os atos de Svidrigáilov não são atos nobres, ele é um anti-Midas que faz perder a inocência de tudo o que toca, assim recusa uma purificação. E não é só isso, ele sente medo de que Dúnia possa purificá-lo e daí se mata. Portanto, ele não é só um homem mau - ele é o homem mau que se recusa a pagar seus pecados. O homem mau, mau por si só, sem qualquer motivação para a redenção. Quando Dostoiévski põe uma bala na cabeça de Svidrigailov, ele transforma o personagem no "cara mais mau" que pode existir.
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