Blog do Projeto Amores Expressos
Uma pena que o blog não permita comentários, mas a 'discussão' dos internautas brasileiros provou que a medida é bastante razoável.
Literatura - tudo e mais um pouco.
O excelente "As Correções" de Franzen possui uma fórmula tradicional que move toda a narrativa. Tal qual num seriado como "Lost", por exemplo, o livro de Franzen traz uma história sendo contada no presente - o conflito entre duas gerações da família Lambert, com pais e filhos cada vez mais incomunicáveis - e em cada capítulo a micro história de um dos membros da família é apresentada em forma de flash-back. Em cada capítulo montamos uma parte do quebra-cabeças, fazendo com que o conflito que foi apresentado no presente fique mais e mais intrincado, até que todos os personagens se tornam como que vivos, fazendo o leitor sentir grande empatia por cada um deles, como se fossem nossos conhecidos. O flash-back, que poderia incomodar alguns, mal é percebido, tamanho o talento do escritor em misturar as histórias. Nunca temos aquela sensação terrível de que um livro foi abandonado e outro começou - ao contrário de alguns livros que utilizam o recurso e que são parecidos com aquele amigo chato que começa uma piada sem concluir a outra, deixando-nos curiosos. Franzen é magistral no modo como conduz a história, no ritmo como ela é contada e na capacidade de esconder detalhes para causar mais impacto quando são apresentados (o exemplo mais claro disso é quando Denise descobre que seu pai pediu demissão por sua causa). Daí, quando todas as histórias individuais são contadas, o autor, mais uma vez de modo muito competente, acelera a narrativa para que o livro acabe rápido, afinal aquilo que queria explorar, já foi explorado. O leitor termina o livro satisfeito e o autor consegue atingir seu objetivo. Enfim, o leitor sabe que foi manipulado e enxerga como, mas não está nem aí.
Como o livro de Franzen, "Bem-vindo ao Clube" de Coe é um livro estruturado de um modo tradicional, apesar do uso de vários modos de narrar (jornais, páginas de diários, cartas). Há uma pequena introdução, em que dos personagens que desconhecemos começam um diálogo e daí começam a contar a história de seus pais. Depois que se encerra a introdução, um narrador impessoal começa a contar a história de um grupo de amigos, cujo título do capítulo - que depois perceberemos será um título importante - é "A Gatinha e o Cabeludo". O cenário é bastante interessante: a Inglaterra pré-Thatcher, com sindicatos e patrões em guerra e o IRA em plena atividade. O núcleo da história é o garoto Benjamin Trotter e o autor vai apresentando os personagens que estão à sua volta. Inclusive sua irmã, a gatinha do título da primeira parte, uma personagem sem grande importância, até que ela começa a namorar um cabeludo. O tal cabeludo passa a influenciar Benjamin, de modo mais evidente em suas escolhas musicais, mas isso é claro é apenas a fachada. A sutileza da primeira parte é subitamente cortada na cena final, quando o cabeludo leva sua namorada até um bar para pedi-la em casamento e uma bomba explode, numa das descrições mais perturbadoras de um atentado terrorista. Até este ponto, o livro é genial, perfeito. Daí vem a segunda parte e tudo cai por terra.
O exemplo mais lembrado dessa apropriação feita pela ficção talvez seja o personagem de Cervantes, que de leitor dos instigantes livros de cavalaria passa a se reconhecer como um corajoso cavaleiro capaz de se aventurar em realizações grandiosas. Nasce assim o Cavaleiro da Triste Figura, ou Dom Quixote, como lemos na capa do livro. Os resultados dessa substituição da pessoa real pelo personagem ficcional é cômico: enquanto leitor, o senhor de La Mancha é eficiente em seguir os enredos ficcionais, mas como personagem ficcional agindo sobre a realidade, o cavaleiro transforma-se numa figura cômica. Isso se dá porque somente ele se transporta para a ficção, as pessoas e as coisas se recusam a fazê-lo. Os moinhos, são vistos como personagens ficcionais pelo cavaleiro, mas continuam moinhos. Não seguem o enredo da ficção das cavalarias.
Talvez também, a personagem feminina que mais se assemelha ao leitor que se tornou Quixote seja a senhora Bovary de Flaubert. A leitora de Flaubert fez surgir até o termo bovarysmo, que se refere ao leitor que passa a não distinguir mais a fronteira que separa realidade e ficção. Madame Bovary é uma leitora voraz, que vê o amor idealizado através dos livros e passa a imaginá-lo como real, mudando seu comportamento em função das paixões que pensa serem genuínas paixões de romances. Em certo trecho, lemos a sua idealização num diálogo com Rodolfo:
"- Você me ama?
- Mas é claro que a amo! - respondia ele.
- Muito?
- Com certeza!
- Você não amou outras, não é?
- Acha que me conheceu virgem?! - exclamava ele, rindo"
Que dizer do autor? Como se sabe, todo autor é também um leitor. Sendo assim, quem melhor que Fernando Pessoa para nos levar até o autor/leitor ficcional? O heterônimo Ricardo Reis, o poeta clássico fictício de Fernando Pessoa, é também leitor e admirador de outro heterônimo, Alberto Caeiro. Na "Poesia Completa" de Caeiro, lemos o prefácio escrito por Ricardo Reis, que dum modo magnífico e obscuro relaciona um 'evento' da vida de Caeiro à sua poesia:
"A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nele de que narrar. Seus poemas são o que viveu. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. O mesmo breve episódio, improfícuo e absurdo, que deu origem aos [oito] poemas de O Pastor Amoroso, não foi um incidente, senão, por assim dizer, um esquecimento."
Por último, como não se lembrar do ávido leitor Jorge Luis Borges, um autor que se torna personagem em seus contos e que cita leituras de obras que nunca existiram? É dele a idéia mais aterrorizante para um leitor: a constituição da Babel, a biblioteca infinita, cujos labirínticos hexagonais contêm longas prateleiras cobertas de livros, cujos leitores percorrem-na em busca do Livro. Como nao se ver retratado, ao sentir a angustiante sensação de que por mais que percorramos nossas prateleiras, jamais saciaremos nossa fome de leitura, jamais encontraremos o Livro, tal como no conto de Borges?