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31 janeiro 2005

Liberdade e Razão

O livro "Crime e Castigo" pode ser visto de muitos ângulos diferentes. São vários os temas que permeiam a obra: paranóia, religiosidade, culpa e redenção, crítica aos modelos sociais do Ocidente, crueldade na sociedade russa, liberdade e responsabilidade, para citar alguns. Claro que antes de mais nada, o livro se tornou popular por sua fórmula: a perseguição do rato pelo gato, o romance policial. Enfim, o romance consegue colocar na roda discussões filosóficas complexas e ao mesmo tempo ser popular, o que é para mim o grande mérito da obra. O que mais me chama a atenção no romance, no entanto, são suas críticas a liberdade individual e à razão.

Até que ponto uma pessoa pode tomar decisões levando em conta apenas sua própria liberdade? A pergunta que permeia o romance é feita do modo mais radical possível. Raskolnikov, o protagonista do romance decide matar uma velhinha. Pronto. Justifica sua ação imaginando um mundo de seres ordinários e extraordinários. Esses seres extraordinários são os que fazem o mundo mudar, enquanto os seres ordinários simplesmente giram a roda do mundo. Aos seres extraordinários tudo é permitido, principalmente passar por cima de leis vigentes. Raskolnikov quer provar a si mesmo que pode matar alguém e continuar vivendo numa boa. Ao colocar o foco sob o ponto de vista do assassino, o autor faz-nos questionar o valor da liberdade individual. Ou seja, até que limite podemos julgar uma pessoa? Se sua liberdade pessoal é limitada, como limitá-la sem que isso implique em uma infração de sua liberdade? Se, ao contrário, sua liberdade é ilimitada, como viver numa sociedade cujas regras preservam direitos, ao mesmo tempo que restringe o principal direito de alguém, que é sua liberdade, em favor de uma "liberdade coletiva"?

Misturado ao tema, temos a religiosidade, que é vista de modo freqüente na obra de Dostoiévski. A consciência atormenta o assassino, que se vê impossibilitado de viver com sua culpa. Precisa da redenção, através da confissão. Isso parece servir de catapulta para que o autor expresse suas críticas à razão. Por exemplo, o capítulo que narra o assassinato é extremamente claro. A única coisa que faz Raskolnikov ter medo é perder sua razão, não conseguir pensar claramente e se esquecer de algum detalhe que possa incriminá-lo. O contraste com os outros capítulos é visível: no capítulo 1 da primeira parte, percebemos um Raskolnikov paranóico e no capítulo 5 o autor descreve Raskolnikov pensando em diversas coisas de forma bem fragmentada, dando a idéia de que o personagem é incapaz de pensar claramente sobre qualquer coisa importante. Ou seja, apesar do autor descrever um personagem psicologicamente doente durante todo o romance, se lermos apenas o capítulo que narra o assassinato, vemos um Raskolnikov psicologicamente bem. Tudo é feito de modo claramente racional.

No final da obra também percebemos essa crítica à razão. Quando Raskolnikov é julgado culpado, sua pena é abrandada apesar do autor dizer que tudo foi dito tal qual aconteceu e novamente, embora não se narre as palavras do personagem, percebemos clareza e racionalidade. Ou seja, o modo racional de agir que deveria servir para o agravamento do delito, faz com que o assassino seja tratado com misericórdia. Dostoiévski, com isso, abre as portas para questões tais como: é realmente a razão algo assim tão importante? Pode ela substituir a fé, por exemplo? A discussão da razão X fé é percebida na descrição do protagonista racional (assassino) e do protagonista que busca sua redenção (confissão e cumprimento da pena).

Hoje em dia, muitos dizem que "Crime e Castigo" envelheceu mais do que devia. Seus temas e seus argumentos, para muitos, é fraco e completamente influenciado por pontos de vista que às vezes beiram o preconceito. Pessoalmente, não encaro assim. Acredito que muitas das questões colocados durante o romance ainda são bem pertinentes. A sociedade atual vem cada vez mais levantando uma bandeira de liberdade sem questionar sobre suas implicações. Boa parte das pessoas buscam liberdade sem se lembrarem que isso envolve muita responsabilidade. Por exemplo, muitos louvam a internet como o meio mais libertário que a humanidade poderia sonhar. É um campo em que tudo é permitido, segundo a visão de alguns. Com isso, quando alguém vai à justiça por causa de algum conteúdo distribuído indiscriminadamente (notícias irresponsáveis, materiais piratas, etc.) boa parte das pessoas já bradam insultos aos "inimigos" da liberdade. E nem sempre é assim.

Também hoje, a razão é colocada acima de qualquer aspecto. Muitos acham que o mundo deve ser "racionalmente" explicado. Num mundo moderno, para muitos, não há lugar para a fé. O problema é que não há espaço para uma compreensão dos problemas humanos, adotando esse ponto de vista. A intolerância religiosa que muitos criticam é simplesmente transformada. Razão vira religião e, de modo intolerante, muitos buscam impor seus conceitos sem respeitar o ponto de vista daqueles que não concordam. Questões polêmicas (por exemplo o aborto, o uso de embriões humanos em pesquisas, etc.) devem ser tratadas de modo racional e enfiadas goela abaixo dos que "prejudicam" a vida, com seu modo religioso de ver o mundo. Em resumo, ao questionar alguns temas, nem sempre encontramos o certo ou o errado, mas muitas vezes ampliamos nossa visão por considerar mais aspectos que estão em nosso redor.

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Clube de Leituras

Clube de Leituras LLL
Para quem ainda não está sabendo de nada vou explicar: o Alexandre propôs um clube de leituras entre os leitores do seu blog. A primeira obra é "Crime e Castigo", do Dostoiévski. Cada participante postará seus comentários sobre a obra a partir de hoje. Bom, então vamos lá, vou postar daqui a pouco alguns pontos que achei interessante no romance. Por enquanto, abaixo vai um trecho que para mim é um dos melhores do romance. Para quem não leu, só posso dizer que muita coisa acontece até chegar aqui. E a reação que temos ao lê-lo é muito impressionante:

- Que procura por aqui? - disse, sem se mexer e sem mudar de posição.
- Eu, nada, meu caro. Bom dia - respondeu Svidrigáilov.
- Isto não é lugar...
- Eu, meu amigo, vou para o estrangeiro.
- Para o estrangeiro?
- Para a América.
- Para a América?
Svidrigáilov puxou o revólver e pôs a bala no tambor. Akhiles franziu o sobrolho.
- A que propósito vem essa gracinha? Isto não é lugar.
- E por que não é lugar?
- Porque não.
Bem, meu amigo, tanto faz. É um bom lugar; se te perguntarem, dirás, com mil diabos, que fui para a América.
Apoiou o revólver sobre a fronte direita.
- Ah, isso não, aqui não é lugar! - gritou Akhiles, abrindo cada vez mais os olhos. Svidrigáilov deu ao gatilho...

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28 janeiro 2005

O Segundo

No filme "Sweet and Lowdown", de Woody Allen, o ator Sean Penn faz o papel de um exímio músico que vivia atormentado por ser contemporâneo de um gênio. Apesar do esforço e da ambição, ele era sempre mencionado como o segundo melhor. Esse tormento persistiu por toda a sua vida. Quando assisti ao filme logo me veio à mente José Cândido de Carvalho. O escritor é um gênio, mas toda vez que alguém fala de "O Coronel e o Lobisomem", colocam Guimarães Rosa no meio. Aí os críticos literários tendem a transformá-lo em "quase" um Guimarães Rosa.

Claro que para muitos não há nenhum problema em ser comparado à Guimarães Rosa. O grande problema é que a obra-prima de José Cândido de Carvalho é mais do que isso. A linguagem inovadora utilizada na obra, que faz com que muitos críticos o comparem a Guimarães Rosa, é apenas uma das qualidades do romance. Reduzi-la a uma comparação com "Grande Sertão: Veredas" é esquecer de diversas qualidades. Escrito na primeira pessoa, a obra o conta a história do Coronel Ponciano e enfoca os contrastes das vidas rural e urbana. O personagem principal conta sua própria história, o que faz lembrar um pouco o narrador de "Sargento Getúlio" de João Ubaldo Ribeiro. Inclusive os últimos capítulos de ambas as obras assemelham-se: em José Cândido o narrador conta sua própria loucura e em João Ubaldo o narrador conta sua própria morte. Os elementos fantásticos e absurdos também podem ser destacados. As lendas do interior (sereias e lobisomens) são personagens reais no início da narrativa do Coronel, o que faz com que esses trechos da obra tenham aquele clima de "histórias de pescador". À medida que as páginas avançam, vamos percebendo como o absurdo de tais personagens vai se dissolvendo e personagens mais racionais os substituem. Ocorre a partir daí, uma crescente decadência do Coronel. O contraste é fabuloso: mítico/real, rural/urbano, ascendência/decadência.

Apesar de tudo isso, muitos não conhecem a obra de José Cândido de Carvalho. Já ouvi comentários que fazem entender que José Cândido era um simples imitador de Guimarães Rosa, o que é uma injustiça muito grande. Dão grande valor a linguagem utilizada, que de fato é uma maravilha, e reduzem suas análises do romance somente a este aspecto. Daí, apesar da genialidade do autor e sua obra, José Cândido de Carvalho vira um Guimarães Rosa menor. E quem não conhece a obra, perde a oportunidade de ler um dos melhores escritores do Brasil.

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27 janeiro 2005

Frase

"Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem quem as vive, e quase parece que, num caso ideal, o ser humano já não vive mais nada pessoalmente, e o amável peso da responsabilidade pessoal se dilui num sistema de fórmulas de significados possíveis."
Robert Musil - O Homem Sem Qualidades

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26 janeiro 2005

Ficção e Realidade

Não sei o que dá na cabeça de alguns leitores de imaginar que uma obra literária de ficção tem "obrigações". Uma das obrigações mais infundadas é a de que a obra tem que "espelhar a realidade". Morro de rir às vezes de algumas resenhas que tratam um livro como se fosse a coluna política ou policial de um jornal. "O autor se preocupa em mostrar a realidade" é o que muitos escrevem por aí em jornais ou revistas. Socorro!

Mas até entendo o porquê dessa demasiada importância dada à realidade. Infelizmente nem todos leram Dom Casmurro. Pior: muitos até leram, mas nem todos aprenderam que nunca se deve confiar num narrador, numa história de ficção. Se soubessem disso, muitos leitores veriam os horizontes da literatura se ampliar. Como se tivessem uma visão monocromática, as pessoas simplesmente acham que um livro de ficção foi feito para se ler da forma mais literal possível. Lêem o livro e vêem o óbvio. Pronto, nada mais precisa ser explicado. É por causa desse tipo de leitor que vemos um monte de gente soltando comentários extremamente engraçados e, acreditem!, fora da realidade.

O fenômeno mais recente de "epidemia da realidade" na ficção foi o best-seller "O Código da Vinci". Numa navegada pela internet encontramos pessoas metendo o pau na igreja, como se o livro tivesse desenterrado as descobertas mais revolucionárias da história. Declaram-se ateus após a leitura do romance, pois "tudo lá é verdade". Confundiram tudo e o autor conseguiu fazer seu livro vender bastante só por escolher um tema polêmico e colocar na história alguns dados reais. E o leitor "acostumado com a realidade" caiu feito um patinho.

Para aqueles que ainda não se contaminaram com a "epidemia da realidade", recomendo a aula de literatura dada por Bernardo Carvalho no maravilhoso livro "Nove Noites". Contrariando toda essa lógica simplista, Bernardo Carvalho mostra aos leitores como os conceitos de ficção e realidade são separados por uma linha quase invisível. Em "Nove Noites" o autor quer buscar a razão do suicídio de um antropólogo americano. O antropólogo realmente existiu, realmente trabalhou com índios e realmente se suicidou. Esses dados servem apenas para que o leitor se sinta mais desconfiado do que é o costume. Às vezes, há uma clara sensação de que o autor está tentando manipular nossa visão dos dados apresentados, com o objetivo de pensarmos de um certo modo. Por exemplo, em determinada parte da obra o autor conta-nos sobre uma viagem que fez na infância com o pai ao Xingu. Na contracapa do livro até vemos uma foto de uma criança (que seria o autor) e um índio. Mas ao acabar de ler a obra não temos certeza se aquilo que foi dito é ficção ou realidade. Se a viagem realmente ocorreu, possivelmente não foi do modo como o narrador nos conta. Enfim, somos tão manipulados entre os dados apresentados e a ficção que a realidade não importa. Embarcamos com o autor na investigação sem nos importar com os resultados apresentados. Não quero ser um estraga prazeres mas para dizer a verdade o final do livro e da investigação é o que menos importa. Mas isso não quer dizer que não nos sentimos satisfeitos. O livro cumpre o seu papel e de quebra ainda ensina aos desavisados que livros como "O Código da Vinci" podem conter dados reais e ainda sim são considerados ficção.

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Definição Ideal

Se Kafka tivesse mais senso de humor, teria escrito "Auto-de-fé" de Elias Canetti. Não estou depreciando Kafka, só elogiando Canetti.

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25 janeiro 2005

Leitores e seus Hábitos Estranhos I - A Fila

Todo mundo costuma dizer que brasileiro adora uma fila. Assim, seguindo essa máxima, pode-se dizer que todo bom leitor brasileiro possui sua própria fila de livros a serem lidos em breve. Regida por uma lógica pessoal (muitas vezes nem tão lógica assim) a fila serve para anestesiarmos nossa consciência da culpa por ter comprado aquele livro e extrapolado mais uma vez a conta do cartão de crédito. Serve também para salvar-nos de situações embaraçosas. Quando perguntam se você já leu o livro tal de Fulano, sai quase que automaticamente a resposta: "Não, mas já tá fila". Independente do que dizem as outras pessoas, a fila é, portanto, um mal necessário.

Um dos habitats preferidos da fila e muitas vezes essencial para sua sobrevivência é o criado-mudo. Todo bom leitor, que possui uma fila de livros respeitável, possui livros bem próximos à cama, mesmo aqueles leitores que não têm o hábito de ler antes de dormir. Em alguns casos de compulsividade extrema, o criado-mudo desaparece na pilha de livros da fila, transformando-se num criado-estante-mudo. Há ainda aqueles que apesar da compulsividade, não sentem nenhum apego aos seus livros e portanto não são de muita frescura. Em tais casos geralmente, além do criado-estante-mudo, o dono da fila usa o chão ao redor da cama para ter a fila sempre por perto, não importando em, ao acordar, vez por outra, pisar num ou noutro livro.

Claro que há ainda algumas variações de fila. Por exemplo, é muito comum a fila de livros para entrar na fila. Devido às limitações do ambiente (tamanho do quarto, kgf que o criado-mudo agüenta ou algum cão mastigador), a fila não pode crescer infinitamente. Em tais casos é necessário estabelecer critérios para que um livro possa entrar na fila. Com isso, ordenamos mentalmente que livros entrarão na fila quando surgir uma vaga.

Mesmo com todos estes artifícios, a fila nem sempre é respeitada, isso porque o mercado editorial segue uma lógica diferente da nossa. Daí, em meio ao tira-e-põe da fila e da fila da fila, lemos uma notícia de lançamento da obra mais esperado do ano. Pronto! Toda a nossa lógica foi pras cucuias e malandramente passamos a obra para o início da fila. Aquele Veríssimo que estava na frente reclama, mas o que podemos fazer? Vai ter que esperar mais uma vez na fila, ou seja, surge daí então a mais nova fila: a fila dos que já foram para a fila.

Apesar de tudo isso, ainda encontramos tempo para ir até uma livraria ou sebo e encontrarmos algo que nos agrada. Com recursos escassos, muitas vezes anotamos o tal livro desejado e criamos a fila dos livros a serem comprados. Bom, pelo menos para essa fila, a informática e a internet são de grande ajuda e para não nos esquecermos jamais de uma ou outra obra, criamos um banco de dados com a relação dos livros da fila. Os menos exigentes criam um arquivo .txt sem nenhum detalhe especial. Já os mais organizados, tendem a criar simbologias próprias e catalogar sistematicamente em tabelas os mais desejados. Alguns criam até um sistema para ter grandes recursos de pesquisa à mão e conseguir saber, por exemplo, que livro está a mais tempo na fila. Em outros casos, o leitor vai até a sua loja virtual preferida e cria sua lista de livros desejados lá mesmo. Eu mesmo possuo duas: uma no Submarino e outra na Amazon. Tudo muito rápido e prático.

Descrever tais hábitos faz você compreender que é uma pessoa perfeitamente normal, apesar de todas essas excentricidades de leitor voraz alucinado e viciado por qualquer letra que apareça à sua frente. Muitos ao seu redor provavelmente não compreenderão plenamente o que faz você ter tais hábitos. Não se aflija. Nem sempre é possível compreender. Na maior parte das vezes, nós mesmos não conseguimos explicar. A única coisa que sabemos é que amamos nossos livros!

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Leia! Leia! Leia!

O Idelber disse tudo. Leia o post dele Escrita acadêmica, escrita jornalística e escrita blogueira e vocês entenderão um pouco mais a linha deste blog. Quando eu crescer, quero escrever assim.

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24 janeiro 2005

Literatura Infanto-Juvenil

Tentei procurar na minha mente qual foi o primeiro livro que li na minha vida. Não sei ao certo, mas acho que foi uma coleção que possuía em casa, com histórias famosas como "João e o Pé de Feijão", "O Gato de Botas", "Branca de Neve e os Sete Anões", dentre outras. Eu era um dos raros garotos da minha sala que freqüentavam a Biblioteca Pública assiduamente e, acreditem!, por vontade própria. Li Carlos Drummond pela primeira vez com uns doze anos de idade. Além dele, li uma infinidade de bons escritores, como Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta, Orígenes Lessa, Lygia Fagundes Telles, dentre outros. Mas dos vários livros que li, os que mais me marcaram (ao contrário de muitos que indicariam Monteiro Lobato ou "Polyana") foram "O Gênio do Crime" e os livros de Marcos Rey, que saíram pela coleção Vagalume, da editora Ática.

João Carlos Marinho escreveu o que eu chamaria de "o" clássico da literatura infanto-juvenil. Se você tem um filho entre 9 à 14 anos faça um favor para ele e presentei-o com esse livro magnífico. O livro, se não estou enganado, foi escrito em 1969 e não conheço nenhum jovem que o tenha lido e tenha se esquecido. A capacidade que o autor tem de despertar a paixão pela literatura é incrível. O enredo é dos mais deliciosos para uma criança: uma quadrilha está falsificando figurinhas de jogadores de futebol e cabe ao gordo e sua turma descobrir os responsáveis. O meu encontro com a obra foi por puro acaso. Apanhei-o na estante, folhei-o, comecei a ler as primeiras páginas e não conseguia mais parar. A linguagem utilizada é bem fácil e o modo como a história é conduzida faz com que o jovem devore todas as páginas de um só vez. João Carlos Marinho foi o primeiro escritor brilhante que li. Digo brilhante porque nunca antes havia imaginado que a leitura pudesse proporcionar tanto prazer quanto o prazer que eu senti ao ler aquele livro. De lá para cá foram poucos os que causaram esta mesma sensação, apesar dos vários livros que li desde então.

A Coleção Vagalume, para quem não conhece, foi um marco da literatura infanto-juvenil aqui no Brasil. Até hoje várias escolas por todo Brasil apontam obras dessa coleção para serem lidas durante o ano letivo. Boa parte dos brasileiros teve o primeiro contato com a literatura através de histórias como "Coração de Onça" e as aventuras bandeirantes de Ofélia e Narbal Fontes, "Menino de Asas" e "Cabra das Rocas", de Homero Homem, "A Ilha Perdida" e "Éramos Seis", de Maria José Dupré, além de Lúcia Machado de Almeida, com "O Caso da Borboleta Atíria", "O Escaravelho do Diabo", "Spharion" e a série com as aventuras de Xisto. Mas, para mim, são de Marcos Rey os melhores livros da coleção. "O Mistério do Cinco Estrelas", "O Rapto do Garoto Dourado" e "Um Cadáver Ouve Rádio" são livros que também estão em minha mente até hoje. São deliciosos e representam o que há de melhor em literatura infanto-juvenil aqui no Brasil. Marcos Rey conseguia como poucos prender minha atenção da primeira à última página de um livro. Assim como João Carlos Marinho, ele também conseguiu me mostrar quão maravilhoso pode ser o hábito da leitura.

É difícil imaginar como podem os pais de hoje gastarem dinheiro com Harry Potter para seus filhos com tantos livros excelentes como esses. Os fãs da série podem defendê-lo por vários fatores, mas um ponto é óbvio de ser notado: os livros da série são gigantescos para uma criança que não tem o hábito de ler "pegar gosto pela coisa". Quanto a esses livros citados anteriormente, são leves, fáceis de serem "devorados", além de possuírem histórias que permanecem fixas na imaginação por muito tempo. Hoje, sinto orgulho de poder citar tais livros junto com minhas melhores lembranças da infância.

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21 janeiro 2005

Referências Pessoais

O Rafael Galvão postou um texto sobre as obras de Jorge Amado. Falou a respeito da sua admiração pela obra dele que considera ser um dos melhores escritores do Brasil do século XX. Comentei que ao ler "Terras do Sem Fim" achei Jorge Amado um grande escritor, mas que a medida que conheci outras obras o meu entusiasmo foi diminuindo. Achei-o repetitivo. Continuando o assunto em um outro post o Rafael rebateu dizendo que de fato havia repetições em sua obra, mas que isso não necessariamente representava um problema.

Enfim, esta história toda me fez pensar em como nossas referências pessoais influenciam nossa visão crítica de uma obra ou de um autor. Somos levados a relevar os erros de uma obra se identificamos nela certas afinidades. Talvez a maior das referências pessoais que carregamos conosco e que valorizamos é a referência geográfica. Quando um escritor fala de algum lugar que nos é próximo geograficamente, isso automaticamente chama a nossa atenção. Quando lemos a descrição de algum lugar numa obra, vez por outra fazemos comentários do tipo: "Ah, esse lugar eu conheço!" ou algo assim. Automaticamente essa sensação é passada ao falar das pessoas deste lugar. Já falei aqui sobre Guimarães Rosa e como o seu linguajar me atrai, pelo fato simples de que já morei no interior de Minas e aquele "idioma" escrito em "Grande Sertão: Veredas" me é muito familiar. Faz-me voltar ao passado, criando uma certa nostalgia. Daí, quando alguém diz que não gosta de Guimarães Rosa justamente por causa da sua forma de escrever, eu não consigo compreender como a pessoa não pode gostar daquela escrita. A distância geográfica às vezes causa um estranhamento e o linguajar da obra se torna chata. Acho que é isso o que faz algumas pessoas não gostarem da forma como Guimarães Rosa escreve.

Já escrevi aqui também a respeito da minha admiração pelas obras de Pedro Nava. Suas memórias são uma viagem por uma cidade que não conheci, a Belo Horizonte do começo até o meio do século 20. Conheço Belo Horizonte hoje e quando leio a respeito da magia de certos lugares que hoje já não existem ou que perderam completamente seus atrativos, sinto uma vontade enorme de ter vivido aquela época e de ter conhecido tais lugares. Esta é também outra referência que nos atrai quase sempre: a referência temporal (não encontrei outro nome para isso, mas se refere aquela sensação de que o tempo da obra cria um "clima", sabem como?). O tempo é um troço engraçado. Vivemos hoje como se fosse algo extremamente normal. Nossa época parece que não tem nenhum grande atrativo e ao lermos sobre o passado, imaginamos mil e uma coisa e parece que tudo ali era melhor e grandioso. Só que daqui a 50 anos talvez as pessoas lerão sobre nossa época e provavelmente sentirão a mesma sensação. Nossa tendência é sempre supervalorizar o passado. Mas, convenhamos, essa sensação de nostalgia literária é uma delícia.

Por essas e outras é que cheguei a conclusão de que não tinha muita paciência com as repetições de Jorge Amado por não ter uma proximidade, nem geográfica, nem temporal, com a Bahia e os baianos. Com os mineiros tudo é diferente. Minha lista de leituras que não canso de reler possui nomes como Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Aníbal Machado, Carlos Drummond de Andrade, Roberto Drummond... Podem falar mal deles, muitas vezes até com razão, mas eu sempre os defendo, assim como o Rafael defende Jorge Amado. Essa "bagagem" nos faz ter sempre algo de especial a dizer sobre um autor que "bate" com nossas referências pessoais.

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A Pedra do Reino

Folheei ontem a nova edição da obra-prima de Ariano Suassuna. Aparentemente não há nada de novo. O autor afirmou numa entrevista à Folha que estava revisando seu conteúdo, mas não sei se é verdade. De qualquer forma é um excelente lançamento, o livro estava indisponível a um tempão. Quem não conhece a obra ainda vá até a livraria mais próxima o mais rápido possível e compre.

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20 janeiro 2005

Desimportando-se com o Autor

Não suporto pessoas que se surpreendem com um comentário a favor ou contra determinadas obras, pelo fato dela ser de um ou outro autor. É sempre a mesma coisa, quando critico uma obra louvada por todos, sempre vem aquele que fala: "É, mas você não pode esquecer que quem escreveu foi Fulano". E o contrário é ainda pior. Quando digo que gosto de "A Ira dos Anjos", o ouvinte abismado retruca com o comentário típico: "Sidney Sheldon? Você gosta de Sidney Sheldon?". Isso só prova que boa parte dos leitores estão acostumados a dar importância demais ao autor. Não conseguem imaginar que um escritor famoso como Machado de Assis possa ter escrito uma obra ruim. Ou não conseguem associar o nome de autor, conhecido por escrever livros comerciais ou até ruins, a uma boa história. Por causa desta mania, muitos acabam generalizando e "a maioria" se torna "todos".

Para aqueles que misturam autor e obra, gostaria que pensassem da seguinte forma: depois que uma obra é publicada o autor não serve para nada. O que ele estava pensando ao conceber a obra, seu ponto de vista a respeito de algum personagem, sua visão da história, enfim, tudo isso não servirá para nada. Tanto é assim que quando um autor faz um comentário do tipo "ninguém entendeu o real significado", eu começo a rir. O único motivo que levaria ele a dizer isso seria sua prórpia maneira de escrever, ou seja, ele está admitindo assim que escreveu mal uma obra, pois não conseguiu mostrar o "real significado". Quando o autor está escrevendo, ele tem uma oportunidade única de dizer o que pensa. Se não sair exatamente como pensou, depois de publicada a obra, não há mais nada a fazer. Somos nós leitores e não o autor, que damos significado a obra. Somos nós que direcionaremos o enfoque para uma parte ou outra, independente do que o autor achar importante. Todo o resto se tornará bobagem.

Imagine se, por exemplo, Machado de Assis concedesse um entrevista hoje afirmado que Capitu realmente traiu Bentinho e que não era seu objetivo deixar a obra ambígua. Isso iria acrescentar alguma coisa? Deixaríamos de tirar nossas próprias conclusões por causa disso? Enfim, faria alguma diferença? Ao ler uma obra ninguém quer saber qual é o ponto de vista do autor a respeito dela. Aliás, é até melhor que não saibamos. Por causa disso uma única obra gera vários pontos de vista, muitos dos quais divergentes entre si e isso não é um problema para nós leitores.

Com isso, critico muitos escritores que possuem a mania de tentar mudar aquilo que escreveram anteriormente. Revisões para melhorar a ortografia de uma obra é uma coisa. Agora rever um trecho com a justificativa de que as pessoas o consideraram um trecho ruim é um desrespeito para com o leitor. O escritor deve aprender que seu papel não é conduzir a UM entendimento de sua obra, mas apenas produzir POSSIBILIDADES de interpretação. É justamente isso que compõe uma grande obra.
Outra coisa que me irrita bastante é quando críticos ou leitores dão importância demais a vida do autor. Embora uma biografia possa servir para abrir nossos olhos e prestarmos uma atenção maior a determinados aspectos da obra do autor, muitos querem reduzir sua criatividade e condicioná-la a certos eventos. "Fulano só escreveu isso porque foi preso" ou "Essa viagem mudou sua vida e por isso produziu a obra tal", são comentários completamente sem pé nem cabeça. Se fosse assim todos os que passaram um tempo na Sibéria seriam um Dostoievsky. Criatividade não é algo que pode ser explicado simplesmente por se buscar conhecer a "psicologia" do autor, como está na moda dizer. Conduzir nossa compreensão de certa obra com base na vida do autor pode nos levar a uma interpretação tão equivocada quanto a de alguém que nunca leu nada sobre a obra.

Ver as coisas sob essa perspectiva nem sempre é simples. Somos muitas vezes induzidos a imaginar que realmente não entendemos o ponto ou não somos capazes de perceber a "beleza" de uma obra. Às vezes, por falta de referências, isso pode ser verdade. Mas para um leitor habitual, sempre vale a pena desconfiar.


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Suplemento Literário

A Faculdade de Letras da UFMG, num projeto digno de grandes elogios, digitalizou e colocou disponível na internet todo o seu acervo do periódico "Suplemento Literário". O periódico foi criado em 1966 pelo ficcionista mineiro Murilo Rubião, sob a responsabilidade da Imprensa Oficial e até 1992 foi publicado semanalmente, acompanhando o jornal "Minas Gerais". Em 1993 a publicação foi interrompida e em 1994 voltou a ser publicado, com periodicidade mensal e independente. O acervo conta com 1282 fascículos indexados, digitalizados e microfilmados, totalizando cerca de 20.000 artigos em 38 anos. Como os fascículos foram somente "escaneados", alguns estão quase ilegíveis. No entanto, a iniciativa amplia o uso da publicação e garante a preservação deste importantíssimo acervo. Em seus 36 anos, a publicação editou textos de autores ilustres e consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Oswald e Mário de Andrade, Henriqueta Lisboa, Emílio Moura, Francisco Iglésias, Antônio Cândido, Cyro dos Anjos, Augusto de Campos, Fábio Lucas, Rui Mourão, Humberto Werneck, Sebastião Nunes, Sérgio Sant'Anna, Duílio Gomes, além de artistas plásticos como Amilcar de Castro, Inimá de Paula e Álvaro Apocalypse entre outros. O Suplemento é referência para pesquisadores e apaixonados pela literatura por conter textos inéditos de vários autores. O acervo encontra-se no site do Suplemento Literário

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19 janeiro 2005

Memória: ficção ou realidade?

Não consigo entender como alguém pode dizer que é fã de Marcel Proust e sua obra "Em Busca do Tempo Perdido" e ainda assim afirmar que não conhece as memórias de Pedro Nava. Algumas pessoas, quando questiono a respeito, simplesmente respondem que ambos têm alguma semelhança mas que Proust escreve ficção e Nava memórias. Ora essa e daí? O problema, em minha opinião, não é se um escreve ficção e o outro não. O problema é Proust ser conhecido e reverenciado no mundo inteiro e Nava não ser lido por quase nenhum brasileiro. O desconhecimento da obra de Nava faz com que muitos não consigam perceber suas semelhanças. Proust apanha no ar meros detalhes e os transforma em sinapses para a volta ao passado. Relembra e revê detalhes com uma poesia magnífica. Mas é tudo ficção. Memórias de ficção. Nava pega suas próprias memórias e as transforma, contando-as de um modo encantador, que nos atrai o tempo todo. Parece até ficção, mas são memórias. Nava e Proust, portanto, são bem semelhantes e o que os diferencia é um mero detalhe: em um a ficção é misturada às memórias e em outro ocorre o contrário. Mas talento os dois têm de sobra.

Proust e Nava contam histórias familiares, destacam costumes, mentalidades, vestuários e hábitos, além de pensamentos filosóficos e políticos. Lendo a obra dos dois autores conhecemos a intimidade de duas sociedades aristocráticas distantes geograficamente, mas se vistas de perto, estão bem próximas. Pode-se afirmar que os personagens da obra de Marcel Proust se lessem as memórias de Pedro Nava se identificariam em muitos aspectos. Vamos pensar assim, pois acredito que alguns personagens de Nava leram Proust e se identificaram em muitos aspectos. Drummond, por exemplo, não só leu como traduziu parte de sua obra. Enfim, Nava era um grande fã de Proust e certamente sua obra foi influenciada pelo autor.

Por isso, recomendo o exercício aos fãs de Proust: leiam todos os volumes das memórias de Nava. Percebam como ficção e realidade são conceitos bem voláteis na literatura. Em alguns casos, Nava ao contar um fato, transforma-o por distorcê-lo ao ponto de se aproximar da ficção. E Proust, como grande contador de histórias, cria uma ficção tão próxima da realidade que até nos esquecemos de diferenciar os dois. E esqueçam os conceitos de realidade e ficção ao lerem ambas as obras. O que importa mesmo não é se o fato ocorreu ou não na vida do autor e sim como somos levados nessa viagem ao passado.

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18 janeiro 2005

Estilo e Literatura

Estilo e literatura podem conviver bem. Não sei ao certo qual é o limite ideal entre a importância que se dá ao estilo e a importância que se dá a história. Pessoalmente, detesto quando o estilo é que compõe a obra. Sou da tradição que diz que a obra é composta de estilo e por isso a história é a coisa mais importante de um romance. A forma como esta deve ser contada pode variar, mas fazer da forma o principal objetivo de uma obra é algo que muitas vezes não dá certo. Daí a minha birra com Joseph Conrad e António Lobo Antunes. Quando vejo pessoas que leram "O Coração das Trevas" ou "Os Cus de Judas" tão entusiasmados, fico me perguntando o que eles têm de tão interessante. Para falarmos bem francamente, não existe história ali, só estilo. Ainda podem debater dizendo que a obscuridade de "O Coração das Trevas" é o que faz o romance ter lá sua importância, mas não consigo gostar. Para mim são páginas e mais páginas de um exercício de estilo.

Falando de limites, vou citar alguns exemplos de escritores que souberam traçá-los de maneira mais ou menos adequada, segundo meu ponto de vista. Em primeiro lugar William Faulkner. O primeiro capítulo de "O Som e a Fúria" é o perfeito exemplo de como estilo e literatura podem conviver em harmonia. Ao narrar a história sob a perspectiva de um retardado, Faulkner construiu uma referência a ser seguida para quem quisesse se aventurar no mundo da ousadia de estilos. Quando chegamos a terceira parte, a parte mais racional do romance, a surpresa é muito boa. Para quem persistiu e chegou até lá sem entender muito bem o que estava acontecendo, a terceira parte é um prêmio. Construímos relações com a primeira parte e ao final estamos com vontade de ler o romance novamente. Notem que o estilo contribui (e muito!) para que obra seja tão interessante. Não há uma impressão de que o escritor estava simplesmente exercitando um estilo, mas a sensação é de que estamos dentro da mente dos personagens. As mudanças radicais da estrutura do texto forçam a nossa mente a nos colocarmos no lugar dos personagens e sentir os acontecimentos, segundo a ótica de cada um.

Mas mesmo Faulkner cometeu seus excessos. "Absalão, Absalão!" é considerado por muitos como uma evolução de "O Som e a Fúria". Eu, ao contrário, acredito que Faulkner colocou muito estilo na história, que é excelente, e o resultado ficou abaixo de "O Som e a Fúria". A justificativa é demonstrar como uma mesma história pode ser ampliada, com diversos pontos de vista sendo misturados. A narrativa é propositalmente anárquica, circular e muitas vezes obscura. Ao final temos um quebra-cabeças montado que nem sabemos se realmente aconteceu da forma como foi contada a história. O que atrapalha no romance é a mania que Faulkner tem de intercalar capítulos simples com capítulos extremamente complexos. Isso faz baixar nosso entusiasmo e entre um e outro sentimos um grande tédio. Embora o livro vá melhorando a medida que as páginas avançam, a sensação final é de que Faulkner está nos falando: "Viram? Eu consegui!".

Outro grande exemplo de estilo é Guimarães Rosa. Guimarães Rosa transformou a ordem estabelecida pelo romance no Brasil. Misturou prosa e poesia, transformando-as em algo único e fez avançar a literatura brasileira de uma forma nunca antes vista. Não é à toa que "Grande Sertão: Veredas" é quase uma unanimidade entre os críticos. A complexidade do romance não está na história, que é mais ou menos banal, e sim na linguagem utilizada. Já morei no interior de Minas Gerais e a linguagem é muito próxima às minhas referências. Mas mesmo para aqueles que desconhecem tal linguagem, ao ler em voz alta o romance, a sonoridade apresentada pelo texto faz criar uma "música" agradável e harmoniosa. Mas a complexidade da linguagem apresentada, que é sua grande virtude, também é seu grande defeito. Guimarães Rosa é impossível de ser traduzido e produzir o mesmo impacto em outro idioma, devido à forma radical de distorcer o português. Não conheço a tradução para o inglês, cujo título virou "The Devil to Pay in the Backlands", mas pelas discussões que acompanhei a respeito, os leitores de lá associam o personagem Riobaldo a Fausto de Goethe, dando assim mais valor à historia do que à linguagem utilizada. Na Amazon, um dos leitores comenta que a tradução em inglês da obra deixa a desejar (inglês britânico), inclusive critica a forma como o título do romance foi traduzido. Portanto, quando Guimarães Rosa associou seu estilo à sua linguagem, automaticamente reduziu o alcance da obra.

Em resumo, tanto em "O Som e a Fúria" como em "Grande Sertão: Veredas" o que vemos é uma associação consciente e inteligente de história e estilo. Podemos dizer que o estilo é quase um personagem, devido a sua importância. Não conseguimos imaginar tais obras sendo concebidas de outra forma. Quando o estilo chama mais atenção do que isso, faz criar uma sensação de monotonia e a história perde o sentido. Muitos amam esses exercícios. Eu, quando cumpro o papel de leitor, exijo que o estilo tenha sua razão de ser, se não vejo isso, acabo abandonando a obra.

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17 janeiro 2005

400 Anos

"En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor." Assim começa o maior romance de todos os tempos, segundo uma votação de críticos literários no mundo inteiro. É claro que somente um post não seria suficiente para dizer o quanto esta obra foi importante para a literatura. Basta dizer que depois de 400 anos, a imagem do cavaleiro errante e seu companheiro estão na mente de pessoas do mundo inteiro.
Para comemorar, o Instituto Cervantes relançou uma edição de "El Quijote" que é o sonho de consumo de todo leitor apaixonado. A supervisão do trabalho foi comandada por Francisco Rico, um dos maiores "quixoteiros" do mundo. São dois volumes que reúnem um estudo detalhado de toda a obra, mapas, ilustrações de armas, roupas, construções, instrumentos musicais que eram usados na época, além, é claro, da própria obra. Uma verdadeira enciclopédia cervantina. A obra é talvez o melhor livro já publicado de um autor. Enfim, se você tiver oportunidade de comprá-la, não hesite. Ela valerá cada centavo. Quem quiser conferir os comentários da editora, o link é
http://www.galaxiagutenberg.com/Contenido/Libros/Libro.asp?Codigo=39242

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14 janeiro 2005

O Poder do Absurdo

Falar dos problemas de uma época nunca é fácil. São raros os casos em que eles são colocados de forma clara, sem que o romance fique panfletário. Mesmo o melhor exemplo que tenho em mente, "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, acaba deixando isso um pouco no ar no último capítulo, quando Hans Castorp vai a guerra. Como forma de enfocar os pontos certos, muitos autores usaram o absurdo para tentar trabalhar melhor o assunto.

Os leitores, quase invariavelmente, se lembram logo de Kafka, o rei do absurdo. Os três clássicos do autor ("O Processo", "A Metamorfose" e "O Castelo") colocam o absurdo como parte da vida humana. Especialmente em "O Castelo", Kafka nos mostra como é ridícula a sensação de "poder", que traz ao ser humano a idéia de traquilidade. Lá o poder é inacessível, a sensação de impotência é constante e a vida de todos é regida pelo absurdo. O tema não podia ser mais atual, com a onda de terrorismo que ocorre no mundo inteiro. A sensação de que conduzimos nossos passos e ditamos como vai ser o nosso futuro foi terrivelmente interrompida após o que as TVs do mundo inteiro mostraram em Nova York, Madrid e Beslan.

Albert Camus também tratou o assunto de forma bem pertinente. Por ser filósofo, o conceito de absurdo e a revolta conseqüente nos leva a uma reflexão profunda. Quando lemos "A peste" a sensação é terrível. O escritor, com grande talento, vai aproximando a morte à vida dos personagens e conseqüentemente a nós mesmos, causando grande impacto. Imaginamos um mundo onde os muitos cérebros adormecidos pela rotina são repentinamente acordados quando esta já não faz mais sentido. Num mundo onde cada vez mais o dinheiro, carreira e reconhecimento são cada vez mais enfatizados, a obra tem o papel de abrir nossos olhos a questionar esses valores impostos.

Já na ficção de Elias Canetti o absurdo é aliado ao humor. Em "Auto-de-fé", o professor Kien se casa com sua empregada pelo cuidado dispensado por ela aos seus próprios livros, sua verdadeira paixão. Um Narciso moderno, seu espelho é sua biblioteca. O humor serve para perceber outras incongruências do mundo moderno. Com a internet, o mundo criou um desejo costante por informação. Essa avalanche de dados, que faz com que o homem contemporâneo busque obsessivamente a perfeição intelectual torna-o um Kien, onde verdade e mentira não existem mais, são conceitos que podem ser moldados a cada nova descoberta. Essa busca faz o homem contemporâneo reduzir o mundo a si mesmo e sua própria visão, ao contrário do que se espera.

Por fim, Samuel Beckett radicalizou o absurdo, mostrando a vida humana como uma inteira degradação. Apesar disso, não podemos realmente afirmar se o que vemos em sua obra é realmente um pessimismo constante. "Malone Morre" é uma grande reflexão sobre o nada. Não há uma história e mesmo o personagem narrador, com a leitura de toda a trilogia, não parece ser realmente alguém, mas apenas uma imaginação repentina. O nada é ampliado, ressaltando o vazio. Parece que o tempo todo Beckett põe o absurdo a nossa frente para mostrar-nos que realmente não sabemos onde queremos chegar.

O que há em comum em todas estas obras, além do absurdo, é a maneira como somos influenciados por elas a dedicar maior atenção a nossa individualidade. Num mundo tão acostumado a massificar, muitos se esquecem de perceber seus próprios pontos de vista e refletir sobre si mesmos, o que é o verdadeiro absurdo. Hoje, muitos prendem-se a própria rotina e se dedicam somente a fazer a roda da vida girar. Colocam sua vida no piloto-automático. Não têm projetos pessoais e nem se dão conta disso. O objetivo de suas vidas se resume a dormir e acordar entre as 24 horas do dia. O absurdo, portanto, serve de luneta para que possamos desenvolver maior perspicácia e enxergar além do óbvio.

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13 janeiro 2005

Não é Isso Tudo Que Dizem

A "Cosac & Naify" é a mais nova badalação dos leitores. Todos elogiam suas obras. O catálogo da editora já conta com obras e autores diversos, de excelente qualidade. As capas dos livros são atraentes e chamam bastante atenção. Isso tudo além de alguns projetos mais ousados, como a edição de "Primeiro Amor" de Samuel Beckett, num formato que parece um envelope e o conteúdo uma carta.

Pois bem, tudo parecia ótimo até que eu resolvi adquirir "Auto-de-fé" do Elias Canetti. Para começar a capa não me agradou, parece até que a obra se refere a vida de algum zen budista, ou aos pensamentos de algum tibetano. Isso em si não seria problema algum, mas é que dá a impressão que a editora quer passar a perna em algum amante de Gêngis Khan ou pegar algum seguidor da moda esotérica. Enfim, faz o livro parecer outro livro, destoando seu tema.

Contra isso a editora ou a pessoa responsável pela capa pode argumentar de várias maneiras, mas uma coisa não tem explicação: o número absurdo de erros no texto. Comecei lendo, catei um ou outro e fui avançando, mas quando a coisa começou a me incomodar de verdade, apanhei meu lápis e fui marcando. Até onde eu li, a média é de um para cada vinte páginas. Podem falar o que quiserem, mas nunca um livro pode atingir essa média. Principalmente pelo preço de um "Cosac & Naify". Pois bem, com as anotações em mãos, fui até o site da editora para informar-lhes e o e-mail não funcionou. Desisti.

Não sei ao certo o que houve. A tradução do romance já havia sido feita anteriormente por Herbert Caro e publicada pela "Nova Fronteira". Creio, portanto, que esta é a mesma ou sofreu apenas alguma revisão. Não vejo o porquê de tantos erros. O único trabalho de editora com o texto, seria a revisão adequada, que parece ter sido feita às pressas.

A lição que ela deveria aprender disso é que nada pode ser colocado à frente do texto. A capa pode ser bem trabalhada e nós leitores estamos cada vez mais escolhendo o livro pela capa, mas sempre haverá um ou outro insatisfeito com o trabalho. Isso é normal e não afasta clientes de um novo lançamento (a não ser que todas as capas da editora sejam realmente horríveis). Agora um texto ruim afasta o leitor. Passa uma má impressão de desleixo para com a obra. Já que o produto primário de uma editora são os textos, dar essa impressão é um perigo. Faz parecer que a editora não é isso tudo que dizem.

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12 janeiro 2005

O Desaparecimento da Inteligência

Faça o seguinte teste: vá a alguma livraria e pergunte pelas obras "O Inominável" de Samuel Beckett, "O Homem sem Qualidades" de Robert Musil ou "Absalão, Absalão!" de William Faulkner. Depois procure pelas mesmas obras em sebos da região. Depois acesse os sites das principais editoras e verifique em seus catálogos. Acredito que com muita sorte você encontrará um dos títulos para comprar. Se você é daqueles que ganha na loteria de vez em quando, encontrará dois. Agora se você encontrar os três, possivelmente você tem poderes mágicos.

Aqui no Brasil não há lógica que explique a ausência de alguns títulos. A principal trilogia de Beckett, "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", é sumariamente ignorada pelas editoras, com exceção da Códex que reeditou recentemente "Malone Morre", numa tradução de Paulo Leminski. "Molloy" foi editado pela "Nova Fronteira" e dificilmente é encontrado. Agora "O Inominável" acredito que só mesmo em Portugal, embora também já tenha sido editado pela mesma "Nova Fronteira". É tão raro que numa ocasião que procurei-o num dos mais especializados sebos daqui de Belo Horizonte, a proprietária achou a maior graça na minha pergunta. Beckett foi laureado com o prêmio Nobel e, portanto, não deve ser muito difícil fazer publicidade para vender seus livros. A publicação de tais obras possivelmente deve interessar a alguém mais e possivelmente poderia vender bastante. Mas nenhuma editora dá notícia deles.

Robert Musil foi recentemente vendido em bancas numa edição promocional do jornal "O Globo" e "Folha de São Paulo". Mas foi um livro menor, "O Jovem Törless". A editora "Nova Fronteira" publicou uma versão, com tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth, de "O Homem sem Qualidades" (se não me engano em 1999 ou 2000) mas esta já se encontra esgotada. Pela dificuldade de encontrá-lo em sebos e pela rapidez com que a obra sumiu da editora, das duas uma: ou quem conseguiu comprar o livro não dispõe dele por nada desse mundo, ou o livro foi um fiasco e a editora resolveu recolher todos do mercado. Como estamos falando de Robert Musil, é difícil imaginar que o livro tenha sido um fiasco, já que quase a totalidade dos críticos o coloca como um dos melhores da literatura mundial. E antes que me perguntem, eu não vendo o meu.

Com William Faulkner a falta de lógica é ainda maior. Conseguimos encontrar vários títulos do autor que muitas vezes nem os próprios fãs se lembram. Mas as principais obras: "Luz em Agosto", "Santuário" e "Absalão, Absalão!", o mercado não vê faz tempo. "O Som e a Fúria", depois de uma edição da "Nova Fronteira" numa coleção de grandes clássicos, foi reeditado pela "Cosac & Naify". Antes disso, era praticamente impossível localizá-lo. "Enquanto Agonizo" tem uma edição recente mas também sofria do mesmo mal.

Não sei ainda qual a dificuldade. Não deve ser a tradução, pois tais obras foram escritas em francês, alemão e inglês, idiomas que são ensinados na maior parte das faculdades de Letras do país. Não acredito que seja vendagem também. Se precisar de algum estímulo de marketing, tais obras foram escritas por grandes nomes da literatura. Já que conseguem vender até mesmo autores que só sabem falar do próprio catarro, o que esses grandes marketeiros não fariam com um excelente escritor? Poderia ser uma pendência qualquer com direitos autorais, mas acho que tudo poderia ser resolvido com dinheiro. E se existem grandes editoras no país, não sei se o problema pode ser simplificado desta forma. Qualquer que seja a razão, junto com essa "amnésia" do mercado editorial, vemos desaparecer também a inteligência.

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11 janeiro 2005

Os Grandes Finais

Já ouvi diversos comentários de que a grande obra brasileira de todos os tempos é "A Pedra do Reino" de Ariano Suassuna. Gente como Cora Rónai e Marcelo Tas já fizeram grandes elogias a obra. Mas o fato é que a obra termina muito mal. O último quarto do livro em alguns momentos chega a ser ruim, como quando Quaderna, durante o depoimento, se diz cego. Isso não é nenhum mistério, já que o próprio escritor revelou sua insatisfação e que o romance teria uma continuação, que nunca saiu. Ao falar sobre o relançamento da obra, Suassuna inclusive afirmou que esta seria revista e modificada em alguns pontos. Apesar disso, o romance é fantástico, os três primeiros quartos são um primor de literatura.

Mesmo assim fico me perguntando porque muitos livros bons têm finais ruins ou decepcionantes? Será que é mais fácil criar uma grande obra do que terminá-la? É estranho imaginar que algum escritor se propôs escrever uma grande obra sem saber ao certo aonde gostaria de chegar. Nesta questão, Kafka é o maior (e melhor) dos paradoxos. Suas principais obras nem foram acabadas e, por isso, não podemos afirmar que possuam um 'final'. E mesmo assim possuem os melhores finais da literatura. "O Castelo" chega a cometer o insulto de acabar no meio de uma frase! Mas em momento algum se tem a sensação de que a obra foi "apressada" para que chegasse logo o final. Talvez essa tenha sido a maior das virtudes de Kafka: sua paciência. Parece que a cada linha de "O Castelo", principalmente nas finais, vemos o escritor ao lado dizendo: "Relaxa, ainda tem muita coisa pela frente". Mesmo na obra "O Processo", em que aparentemente o final foi escrito, não se nota nenhuma preocupação em que o livro acabe. Aliás ler ou não o último capítulo de "O Processo" não faz a menor diferença. O círculo já se fechou, tudo está perfeito. Nos contos, onde os finais foram realmente colocados, Kafka é ainda mais perfeccionista. Criar um conceito, dominá-lo e ainda arrebatar-nos com uma conclusão grandiosa só se consegue sendo um mestre. É o que Kafka faz em "O Artista da Fome", um dos melhores contos da literatura mundial. A pantera na jaula dá uma forte sensação de "conjunto", ou seja, temos a certeza que ela deveria estar ali ao final. Teríamos colocado ela ali se tivéssemos o poder de criação de Kafka. Os finais de Kafka simplesmente ampliam sua obra. Ao contrário do teatro, onde as cortinas se fecham, nas obras de Kafka as cortinas se abrem e podemos ver melhor sua beleza.

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10 janeiro 2005

Não Li Porque é Ruim

Não pesquisei ainda a origem, mas creio que deve ter sido algum desses pseudo-filósofos quem primeiro afirmou que para se falar mal de um livro é preciso primeiramente lê-lo. Faça as contas: se você ler em média 100 livros a cada ano, durante 50 anos, você terá lido 5000 livros. A minha lista de livros a ler deve ultrapassar esses cinco mil livros. Cinco mil livros representam poucos livros em comparação ao que é editado hoje no mundo inteiro. Agora, vem um e afirma que eu devo queimar minhas pestanas e perder o meu tempo com aquilo que é ruim "só para poder criticar"? Quem lê um livro para ter o prazer de criticá-lo, no mínimo não dá valor ao seu tempo, que é o bem mais escasso que possuímos.

O fato deveria ser tão óbvio e claro, que toda vez que alguém viesse até mim e me perguntasse se eu alguma vez já li algum livro do Paulo Coelho, não deveria ficar surpreso com minha resposta. É ruim sim e eu não leio. Um dos pontos básicos que buscamos numa obra é sua temática. Sua temática "auto-ajudesca-esoterística" não me interessa. Para saber isso não é preciso ler um livro dele, basta conhecer seu gosto pessoal. Se você conhece a si mesmo e lê a orelha e a contracapa de um livro, a probabilidade de você errar é pequena, muito pequena.

Mas ainda existe a possibilidade da editora ter um retardado que escreve as contracapas e que faz um excelente livro parecer uma porcaria, ou o contrário. Por isso deve-se procurar uma outra alternativa. Uma resenha crítica pode ser de ajuda. Procure ler resenhas de pessoas que tratem os aspectos da construção da obra: seu tema, seus personagens, seu enredo, etc. Se o que você lê faz imaginar que o autor do livro é um estúpido, afaste-se. Como diz o ditado, onde há fumaça, há fogo. Incremente estes indicativos com a qualidade técnica do livro. Se o autor do livro não domina aspectos técnicos básicos da literatura, muito possivelmente suas histórias não terão grande valor. Com a internet, fica cada vez mais difícil camuflar um péssimo autor. Aqui, como numa vila de fofoqueiros, a informação corre. Existem excelentes blogs e sites que falam de diversos autores e suas obras, basta lê-los.

Agora nunca, nunca mesmo, responda com a afirmação "você não pode falar mal de um livro que nunca leu". Dizer isso é tão ridículo como afirmar que um cientista da NASA não pode falar sobre Marte porque ele nunca esteve lá. Além disso, falar mal de um livro ruim que não deve ser lido não é um paradoxo. Pelo contrário, é um serviço prestado à inteligência para combater a mediocridade. Quando você não os lê, você está contribuindo para que eles desapareçam.

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07 janeiro 2005

"O Tempo e o Vento"

Minha edição dos sete tomos da obra máxima de Érico Veríssimo é anterior as edições atuais comemorativas do centenário de nascimento do autor. A algum tempo já vinham sendo divulgadas informações a respeito e prometia-se o relançamento completo de suas obras pela editora "Globo". A minha decepção foi grande quando percebi que os tais relançamentos nada mais eram do que o mesmo livro com uma capa mais bacana e uma nova diagramação. Só. Até os livros em formato de bolso, "Clarissa" e "Olhai os Lírios do Campo" por exemplo, continuaram com o mesmo papel jornal de péssima qualidade, que tortura quem tem alergia por feder tanto. Foi preciso a editora "Companhia das Letras" relançar suas obras para que a gente percebesse o tamanho da ingratidão da editora para com aquele que foi talvez o seu maior colaborador.

Todos os tomos da nova edição da obra, publicados pela "Companhia das Letras", foram tratados com a atenção que a obra e o escritor mereciam. As capas são belas, apesar de econômicas, mas o que surpreende mesmo é como o conteúdo da obra, que já era bom, pôde ficar ainda melhor. Já no início a editora publica uma árvore genealógica dos Terra-Cambará e um mapa do Rio Grande do Sul desenhado por Paulo von Poser. Para mim, que já havia lido toda a obra, foi um impacto delicioso poder rememorar cada nome e cada personalidade por trás daquele nome e acompanhar pelo mapa seus caminhos. Para quem não conhece a obra, acredito que a árvore servirá como guia de leitura, permitindo um esclarecimento "visual" para quaisquer dúvidas. Acho que ela será perfeitamente útil na primeira parte da obra, "O Continente", em que as raízes das famílias Terra-Cambará se cruzam com o tempo presente da obra, o cerco à casa patriarcal durante a guerra.

Além da árvore, a editora procurou ampliar a visão dos leitores da obra por incluir ainda um sessão de cronologia de fatos históricos. Assim o leitor consegue reconhecer não só os personagens, mas como eles foram inseridos como coadjuvantes da história do Brasil. Ao se informar através da lista, o leitor consegue distinguir ainda mais a maestria de Érico ao contar sua história, amplificando suas qualidades literárias. E se é ao escritor que a edição chama a atenção, então por que não incluir também fatos de sua própria vida ou desenhos feitos por ele? Pois foi isso mesmo que a editora fez. Embora desnecessário para reconhecer o talento do autor, tais notas biográficas são uma delícia de serem lidas. A sensação sempre é da editora prestando uma bela homenagem ao escritor.

Para fechar, não poderiam faltar deliciosos prefácios da obra e os primeiros volumes trazem textos dos professores Marco Antonio Villa e Regina Zilberman, e do romancista Luiz Ruffato. Enfim, a obra vale cada centavo que estão cobrando.

Fico imaginado como os responsáveis da editora "Globo" puderam ser tão míopes e não puderam imaginar uma edição especial assim com tantos aparatos. Economicamente parece ser um projeto viável, embora o mercado editorial brasileiro tenha muitas dificuldades. Isso faria bem inclusive para a própria editora que se mostraria antenada com o atual mercado, que tem mostrado cada vez mais que os leitores vêm notando essas sutis diferenças e valorizando as boas idéias que melhoram o que já é bom. Quando comparo minha edição à nova, não sinto nenhuma pena em trocá-la. Ponto para a "Companhia das Letras".

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06 janeiro 2005

O Fato Óbvio

A Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa é um lugar maravilhoso. Além do grande acervo com ótimas obras, o prédio projetado por Oscar Niemeyer é bonito e aconchegante, estando situado numa das áreas mais belas de Belo Horizonte, a Praça da Liberdade. Uma visita lá é, antes de tudo, um passeio relaxante. Infelizmente hoje fiquei surpreso ao chegar lá e descobrir que a área de empréstimos domiciliares está fechada e só será reaberta em fevereiro. Questionei-me a respeito da época escolhida para fecharem, em meio às férias escolares. Afinal, imaginei, esta deveria ser a época mais movimentada, onde estudantes procurariam preencher um pouco do seu tempo livre de férias com um bom livro. Como não creio que esteja sobrando dinheiro desses estudantes para adquiri-los ao invés de solicitar empréstimos, acredito em uma dessas duas hipóteses:
(1) a Biblioteca escolheu a época ideal, pois a maioria dos estudantes só vai à Biblioteca quando precisam fazer algum trabalho escolar;
(2) um maluco decretou o fechamento justamente para se divertir com a cara dos estudantes que irão afoitos e se decepcionarão, provocando assim protestos e confusão.

Se apanharmos qualquer estatística de pesquisa sobre os hábitos de leitura dos brasileiros chegaremos ao fato óbvio de que o livro não faz parte da vida da grande maioria. Estamos no Sudeste, a área de maior desenvolvimento econômico do país. Aqui mais pessoas têm acesso à informação. Mesmo assim, a falta de relação do cidadão com o livro já é bastante evidente, mesmo nos estudantes, que deveriam ser os principais consumidores de livros. Esta realidade passa do ensino médio, onde já deveria ser tratado como um problema grave, para o ensino superior. Daí notamos a imensa quantidade de profissionais recém-formados completamente boçais, incapazes de escrever um bilhete corretamente. Que dirá articular idéias ou criar argumentos! Isso faz com que mesmo aqueles leitores eventuais sejam incapazes de descobrir se um livro é bom ou não. Pior: são incapazes de ter pelo menos a dúvida! Numa navegada pelas maiores comunidades do Orkut cujo tema é a literatura, vemos tópicos absurdamente banais como "Que livro você leu na escola?", "Que livro você ganhou neste Natal?", "Quantos livros você lê?", etc... Raramente vemos alguém que questiona a relevância de uma obra ou apresenta argumentos claros sobre qualidades ou defeitos de uma obra. A grande maioria não tem capacidade de fazer uma leitura crítica de qualquer obra. Lêem um best-seller qualquer e afirmam simplesmente: "eu li e achei bom". Mas achou bom por quê?

Sinceramente, sinto-me desanimado com essas propagandas e programas de incentivo a leitura. Não basta somente dar um livro a alguém para garantir a evolução cultural de um povo. É preciso mais do que isso, é preciso criar intimidade entre o livro e o leitor. Infelizmente, com estas constatações, parece que até o final das férias, ninguém vai ligar para a Luiz de Bessa e a hipótese número 1 se provará certa.

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O Humor na Literatura

É inevitável. Sempre que surge um daqueles palestrantes de empresas famosos, vem aquele sujeito e pergunta: "Você já assistiu alguma palestra de Fulano? Ele é ótimo, a gente ri o tempo todo!". O fato é que para muitos o humor está diretamente ligado com a qualidade do trabalho da pessoa. Os dois sempre andam juntos. Muitas vezes eu convido o tal entusiasta a descrever as idéias do tal palestrante, sem o humor, e eles se surpreendem ao reparar que muitos de seus "conselhos" não tem pé nem cabeça, não existe nenhuma razão fundamentada para serem divulgados, só o "achismo". Quando isso acontece na literatura a coisa fica ainda pior. Normalmente, eu sempre fico com um pé atrás ao ler obras ou autores que têm sua fama ligada ao seu senso de humor. Isso porque humor sempre agrada. Se não agradou, é porque a piada é muito ruim. Talvez também você é o motivo da chacota e por isso não gosta do engraçadinho. Mas o humor pode ser muito prejudicial, por nos fazer desperceber erros ou incoerências num texto. Somos tão massageados com o riso que não conseguimos ver o óbvio: o texto é fraco. Gostaria de mostrar dois exemplos sobre o humor na literatura: Jô Soares e Luis Fernando Veríssimo.

Jô Soares é conhecido como um grande humorista. As duas obras "O Xangô de Baker Street" e "O Homem que Matou Getúlio Vargas" são louvadas por muitos como sendo boas obras por seu "humor inteligente". Ao ouvir um comentário como esse me pergunto: "Inteligente? Como?" As duas obras podem ser criticadas juntas por apresentarem os mesmos problemas. O texto é recheado de clichês e chavões, dando a impressão que o autor é desleixado ao escolher suas palavras. São tantos, que na metade de qualquer um dos livros dá uma preguiça danada de continuar lendo. Outro grande problema do autor parece ser sua experiência na televisão. A linguagem da televisão e a linguagem literária são completamente diferentes. Mesmo assim, parece que Jô Soares nunca consegue dissociar as duas coisas. Prova disso é o uso excessivo de adjetivos, que faz com a obra se pareça mais com um roteiro do que com um livro. Não assisti ao filme baseado em "O Xangô de Baker Street" mas posso apostar que o diretor não teve grandes dificuldades em filmar as descrições, pois elas já estavam perfeitamente visuais. Não é preciso nenhum esforço mental para visualizar os acontecimentos, o autor já fez isso. O "inteligente" para muitos se resume a uma só coisa: os fatos históricos que são misturados a ficção. Mas mesmo isso é um ponto negativo. Em muitas passagens do livro a impressão é a de que o autor quer espalhar o máximo de dados possíveis sobre determinado assunto e assim provar a sua erudição. Ou seja, na maioria das vezes, tais fatos históricos são supérfluos, fazendo "inchar" os livros. Enfim, os livros não apresentam qualquer criatividade nem estilo. Seu humor só serve para exemplificar o que eu disse no início.

Luis Fernando Veríssimo é outro caso de escritor reconhecido pelo seu humor. Pessoalmente, gosto muito das crônicas do escritor e não tanto dos seus romances. Isso porque nas crônicas a agilidade narrativa ajuda o humor, tornando-o mais leve e direto. Mas isso não quer dizer que seus romances sejam ruins, pelo contrário. Diferente de Jô Soares, Luis Fernando Veríssimo sabe muito bem em que terreno está andando. Suas descrições das situações, mesmo de forma humorística, são bem feitas e os chavões não atrapalham a leitura. Reconhecer Luis Fernando Veríssimo como um bom escritor somente pelo seu "humor inteligente" é depreciar sua obra. Humor não é tudo em seus livros, mas sim uma ferramenta que ele utiliza (e bem!) para descascar a pintura que reveste a vida contemporânea, que esconde o que realmente somos. O resultado é que em muitos casos achamos as situações engraçadas por nos reconhecermos nelas. Casais, amigos, manias e vícios são assuntos abordados e o humor serve para manuseá-los na medida certa. Enfim, o humor não é explorado para esconder falhas, mas sim é trabalhado para expandir suas idéias.

Acredito que todo leitor deveria sempre se perguntar ao apanhar um livro reconhecido pelo seu humor: que tipo de idéias são tratadas? O humor inserido nestas idéias cumpre algum objetivo? Ou serve apenas para banalizar o assunto? Se a idéia é simplesmente fazer rir, siga meu conselho e compre um bom livro de piadas, não um romance.

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05 janeiro 2005

O Idioma Cruel

Hoje deparei-me com um volume de "A Cartuxa de Parma" de Stendhal numa livraria. A surpresa foi enorme, já que ao contrário do acontecia a algum tempo, a obra tem um acabamento muito bom. O livro faz parte de uma coleção que está sendo lançada pela editora Globo, chamada "Clássicos Globo", coordenada pelo jornalista Manuel da Costa Pinto, da Folha de São Paulo. Além do título, já estão disponíveis também "As aventuras do sr. Pickwick" de Charles Dickens e o genial "Memórias de um Sargento de Milícias" de Manuel Antônio de Almeida. Além da revisão na tradução da obra, há também notas introdutórias e um posfácio que complementa bem o trabalho.

Desde que acabei de ler "O Vermelho e o Negro", vinha procurando "A Cartuxa de Parma" em uma edição decente. Encontrei, no entanto, apenas uma daquelas edições de bolso de qualidade duvidosa e portanto recusei-me a comprá-la. Agora tenho aqui disponível uma edição que parece que vai suprir plenamente minha curiosidade, ou seja, quem saiu ganhando foi o leitor. Imediatamente após folhear o livro, fui me lembrando das impressões causadas com a leitura de "O Vermelho e o Negro". Lembro-me que na época trabalhava no interior e ia e vinha, numa viagem de cerca de uma hora e meia, lendo a obra. Na época estava numa fase de ler obras recentes e a primeira sensação foi a estranheza com o português da tradução, mais antigo. Conversei com algumas pessoas que odiaram o livro por causa disso. Isso me faz pensar: por que para muitos o contemporâneo tem mais valor do que o "clássico"? Como pode alguém odiar "O Vermelho e o Negro" por ser "rebuscado" demais e ler livros com erros de português, frases sem nexo e cheios de truques modernos medíocres (frases sem pontuação ou com pontos em excesso, por exemplo) e mesmo assim achar "o máximo"? No post anterior coloquei a idéia de que o idioma materno naturalmente atrai o leitor ao livro. Mas não sei a lógica neste caso. O português de dois séculos atrás é para muitos o idioma cruel. A construção da obra com jeito "clássico" é visto como um espantalho para as idéias que o livro contém, por melhor que elas sejam. Mas se a causa disso é a estranheza e a falta de domínio neste terreno, como se explica então o sucesso das obras contemporâneas com seus erros e truques grotescos? Recuso-me a acreditar que os "pseudo-autores best-sellers" de hoje sejam mais atraentes justamente por causa do português incorreto que utilizam. Para mim, este é o idioma cruel, que afasta o leitor do livro. Nada mais horrível do que folhear um livro e encontrar uma frase composta apenas por pontos finais, que não diz nada, mas é coloca ali para parecer "literatura moderna", livre.

Possivelmente a minha lógica não é a lógica da maioria. Possivelmente este lançamento passará em branco. Possivelmente Stendhal continue afastando leitores.

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A Importância da Tradução na Literatura

Muito tenho lido a respeito dos problemas causados por uma tradução da obra original. Quero citar dos exemplos bem controversos: "Ulysses", de James Joyce e "Pale Fire", de Vladimir Nabokov.

"Ulysses" possui um sem número de articulações e jogos lingüisticos impossíveis de serem traduzidos. Qualquer tradução do idioma original para um idioma completamente diferente, como é o caso do português, implica necessariamente em criar um segundo autor: o tradutor. Os mais implicantes poderiam dizer que isso é algo terrível, que ler "Ulysses" em português não é ler "Ulysses" e que alguém que perde seu tempo lendo uma tradução (aqui no Brasil, a mais acessível é a do Houaiss) deveria colocar a mão na consciência e trocar pelo original. Os principais pontos colocando por estes que defendem a leitura do original é que a compreensão plena da obra não é tudo e que colocar alguém entre você e o escritor é desvirtuar a obra. Rebato os dois argumentos com um só: todo leitor é livre. Ao optar por uma tradução, qualquer que seja, muitas vezes o que o leitor busca pode ser compreensão, mas em alguns casos não é só isso. No meu caso li os dois "Ulysses", o original e a tradução do Houaiss, e para espanto de muitos, gosto mais da tradução em português. Por quê? Não pela compreensão da obra. A obra é muitas vezes incompreensível, seja ela em inglês, em português ou em urdu. O fato é que quando o leitor apanha um livro na estante para ler, ele quer mais do que apenas ler o livro, ele quer interagir com a obra. Esta interação, a meu ver, deve ser sempre confortável. Imagine-se numa sala com Joyce: para mim pouco importa estar conversando diretamente com ele em inglês (valorizando seu sotaque irlandês, sua gagueira ou pronunciar alguma palavra ou a maneira entrecortada de declamar um poema) ou através de um intérprete. O ponto que valorizo ao ler é o conforto na leitura que me permite sentir prazer. Sinto muito mais conforto de ler Joyce em português, mesmo com a perda dos malabarismos linguísticos originais, muitos dos quais eu nem perceberia por esta não ser minha língua materna. Note que a questão não é uma valorização ufanista da língua portuguesa e sim a valorização do conforto que sinto ao ler "Ulysses" em português. Enfim, quero que os jogos linguísticos se explodam, quero passar página a página da obra percebendo os enigmas que o autor lança e isso pode ser conseguido tanto no inglês como no português. Já que me sinto mais confortável ao descobrir esses enigmas lendo em português, valorizo a tradução do Houaiss, que para isso é excelente. Sei que muitas frases são escritas propositalmente de forma ambígua, permitindo novas interpretações, mas se estas são tão escondidas a ponto de você nem percebê-las a não ser que tenha às mãos uma edição crítica com notas, pra quê serve ler o original?

Outro exemplo é "Pale Fire", de Nabokov. A obra se divide em duas: a primeira parte é uma poema enorme e a segunda é uma análise frase a frase do poema. Quem conhece a introdução em inglês de "Lolita" sabe muito bem que Nabokov é um mestre ao escolher palavras e frases perfeitas. Agora, imagine isso num poema. Possuo a edição recente da "Companhia das Letras" em português e parece-me muito boa, mas sabe como é? Na hora que lemos os comentários do crítico a respeito de uma determinada frase, fica sempre aquela má impressão e logo passamos a imaginar a tal frase em inglês. Bom, nesses casos por melhor que seja a tradução, acredito que a única solução possível é a publicação da obra em edição bilíngue, tal como os volumes de T. S. Eliot que foram traduzidos por Ivan Junqueira (a tradução é excelente, mas a edição traz os poemas em seu idioma original ao lado) e lançados recentemente pela editora ARX. Mas mesmo nesses casos, pode-se ver a tradução como algo bom. Ela serve para atrair o leitor e estimulá-lo a buscar um sentido mais claro, que encontrará na obra em seu idioma original. Ou seja, primeiro o leitor sente um conforto ao ler em sua língua materna, mas devido às suas limitações, busca um esclarecimento através do idioma original.

Em resumo, as traduções são como uma fotografia. Muitas vezes você não precisa ter a pessoa à sua frente, tocá-la, sentí-la, cheirá-la. Só a fotografia, mesmo desfocada, serve aos seus objetivos, aproximando duas pessoas. Em outros casos, a fotografia não serve: você conhece a aparência da pessoa, mas quer ficar próxima à ela. Na literatura, isso também ocorre, nem sempre estamos dispostos a estar tão próximos assim do autor. E nem por isso sentimos alguma perda.

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O Primeiro Post

Dentre os meus inúmeros projetos para este ano, estava a criação de um blog próprio que estimulasse a reflexão e discussão de grandes obras literárias. Pois aqui está. Começo hoje a grande odisséia de procurar abordar pontos pertinentes em livros que li e gostei (ou não, sei lá!!!). Tudo é muito novo ainda, portanto algumas coisas podem não funcionar. Mas agora já me lancei ao mar... vamos ao que interessa.
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