Se tivesse que apostar num livro a ser eternamente escrito, escolheria "O Homem Sem Qualidades". Embora quando ouve-se a expressão "livro eterno", normalmente julga-se o eterno sob o ponto de vista do leitor, referindo-se a um livro que é lido e relido por leitores de toda época, imagino, ao contrário, que seria muito mais difícil um livro eterno do ponto de vista do escritor. E nesse sentido, acho que se Robert Musil tivesse vida eterna, provavelmente ele passaria sua eternidade escrevendo e reescrevendo "O Homem Sem Qualidades". Nunca um livro teve tamanha capacidade de – utilizando um termo da matemática – tender ao infinito. Quando alcançamos as páginas finais da obra, a sensação é de que nosso tato está nos enganando. Parece que não faltam apenas poucas páginas, e sim muitíssimas, uma história que se desenrolará por anos de leitura.
Paradoxalmente,
"O Homem Sem Qualidades" é uma irrealização, um livro que fala sobre a incapacidade de alcançar um ideal, uma história onde nada de muito significativo acontece. Há sempre uma fervorosa discussão com o objetivo da construção de uma Ação Patriótica, que será um evento de genialidade ímpar, um evento composto das mais brilhantes mentes de um país, com o objetivo de imortalizar um povo e uma época, mas onde nunca nada acontece. Sempre as discussões se dispersam e a sensação de incapacidade ronda a todos à medida que o tempo passa e se aproxima a data para o anúncio do conteúdo do evento. Aos olhos dos que não participam das discussões, o que se fala durante as reuniões da tal Ação Patriótica representa talvez uma oportunidade única para a imortalidade. Sugestões de várias áreas são enviadas e os responsáveis por tais sugestões torcem para que sua idéia seja escolhida e assim possam participar do que parece ser a maior realização do saber humano. Quem faz parte, porém, sabe que nada acontece de extraordinário, tudo o que a primeira vista parece ser brilhante, com o tempo exala e se perde no ar.
Curiosamente também,
"O Homem Sem Qualidades" foi deixado inacabado por Musil e talvez parte da responsabilidade desta sensação de eternidade da história seja causada por seu formato inacabada. Alguns fragmentos escritos, mas não revisados, fazem crer que toda a discussão seria severamente interrompida pela entrada da Primeira Guerra Mundial no cenário otimista da época. Mesmo assim, o livro que se encontra disponível ao leitor hoje leva a crer que se fosse da vontade de Musil, a história poderia permanecer incompleta por toda a eternidade. Parece que sempre haveria o que escrever. Com disse antes, somente uma parte dessa sensação de eternidade pode ser motivada pela sua imcompletude. Também há o rigor extremo com que Musil conduz a história, levando o leitor a ler o texto, não no ritno que deseja, mas no ritmo que o autor quer. Em suma, até o infinito, se assim fosse possível.
Imaginar um livro sendo escrito eternamente parece ser algo terrível também ao se pensar em outro aspecto. Reconhecendo o arquiteto cuidadoso do texto que era Musil, possivelmente o leitor sentiria essa mesma sensação de imcompletude da obra, afinal sempre haveria uma ausência no texto - o processo de leitura é mais rápido que o processo de escrita. Por mais páginas que Musil escrevesse - e ele era cuidadoso ao fazê-lo -, sempre haveria um leitor aguardando a continuidade da obra. E quando olhamos para dentro dela, a sensação não é diferente. Parece que o texto sempre cresce, tomando todas as direções, logrando nossos sentidos e nos fazendo reconhecer que ali está um texto de uma amplitude grandiosa demais. É como tentar imaginar quantos copos dágua são necessários para comportar todo um oceano. Musil, no fim das contas, possivelmente conseguiria produzir o mesmo efeito grandioso por toda eternidade. Algo que além de admirável, é assustador.
Não sei até que ponto isso pode ser positivo, do ponto de vista do autor. Musil parece que foi atormentado enquanto viveu por este monstro; uma obra que cobrava todo seu tempo, que exigia todo seu esforço de trabalho, que exigia, enfim, a eternidade para sua composição. Imaginar um autor sendo consumido e consumindo todos os seus recursos na realização de uma única obra é como imaginar um Sísifo condenado a rolar sua pedra eternamente. Um escravo de sua vontade de sublimação, sem nenhuma garantia de que seu esforço pudesse ter efeito. Mas ao lermos
"O Homem Sem Qualidades" descobrimos o quanto é difícil resistir a esse monstro. Se no papel de leitores, somos levados a pensar na obra pelo tempo em que vivemos, imagine se fôssemos tomados por sua idéia original, sua gênese. Difícil não nos imaginarmos também transformados em Sísifos com tinta e papel.