Para Onde Caminha a Literatura?
Acabo de ler "O Espaço Moderno" de Alberto Tassinari, um livro que avalia a arte moderna e pós-moderna através do exame do espaço representado por elas. Uma teoria bastante interessante que me levou a pensar sua teoria sob o ponto de vista da literatura. Para situar aqueles que não conhecem o livro, num resumo bem simplista, o autor sugere que o espaço na arte moderna surgiu sem uma teoria correspondente, surgiu a partir da necessidade de combater os conceitos tradicionais de perspectiva, que acompanharam a pintura desde a Renascença. Como o objetivo era opor-se ao naturalismo, então não fazia sentido propor a construção e sim a destruição do espaço. As conseqüências disso são as obras de arte que hoje se tornaram famosas (o autor cita por exemplo "Ritmo de Outono" de Pollock) por sua imitação do trabalho artístico, o sinal do fazer. O trecho abaixo dá uma idéia do que Tassinari diz:
"As fotografias de Pollock no trabalho são obras de Namuth, não de Pollock. A obra de Pollock é outra coisa. Em Ritmo de Outono, o fazer da obra está imitado por sinais e não fotografado e exposto por meio de imagens."
Pois bem, o que isso tem a ver com literatura? Parece que a literatura tem uma história semelhante. Havia um modelo tradicional de descrever os espaços da forma mais detalhada possível, nos romances do século XIX e com a modernidade a ordem passou a ser destruir isso. Penso no "Finnegans Wake" como um marco nesse sentido, mas isso pode ter acontecido muito antes - meu forte não é história da literatura -, de todo modo o livro de Joyce exemplifica bem o que quero dizer: apanhe os conceitos literários tradicionais de tempo, espaço e sujeito e tente enquadrá-los na obra de Joyce. Como ocorreu na pintura, na literatura houve um período de negação dos conceitos, inclusive na literatura brasileira. Apanhe um texto como o "Conto (Não Conto)" de Sérgio Sant'anna e perceba como há ali um esforço de negação até da própria história:
"Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar esta história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha."
Eis então a bola da vez dos nossos dias: metalinguagem - uma palavrinha que se tornou sinônimo de boa literatura. O romance modelo do século XIX era estruturado de um modo a que o narrador conte sua história e tão somente isso (mais uma vez uma simplificação). A partir da modernidade, o texto passa a ser usado para analisar o próprio texto. O leitor consegue encontrar uma série de contradições em um texto e conclui que não se deve confiar nele. A 'lição' que ele aprende depois da leitura é que todo ponto de vista é parcial e muitas vezes até incorreto. Eis o modelo de narrativa da modernidade - mais uma vez recorrendo a simplificação. Como na pintura, antigamente líamos uma história com começo, meio e fim e se nos perguntassem sobre o quê fala o livro, dizíamos "conta a história de..." e relatávamos o que se passava ali. Hoje, em muitos casos, torna-se até difícil responder a pergunta. Como no conto de Sérgio Sant'anna o objetivo é justamente destruir isso que todos dizem ser uma história.
Bom, então aí surgem as questões. Primeiro é preciso admitir que isso só causará o efeito pretendido se o leitor for um leitor especializado, que conheça a tradição literária e toda uma teoria literária que está sendo exibida. O texto sozinho já não basta. Em muitos casos, quando o autor escolhe escrever um texto hermético, mesmo um leitor super-especializado pode somente especular sobre certos sentidos da obra. Talvez o objeto seja justamente causar um efeito e não atingir certo nível de compreensão. Os defensores desse tipo de literatura podem afirmar corretamente que o leitor sempre teve empecilhos à compreensão de uma obra ou de seu objetivo. Nunca todas as chaves estiveram no próprio texto. O idioma, referências históricas e geográficas, além da educação e cultura do próprio leitor (sem contar a inteligência) sempre devem ser levados em conta e podem ser um problema para compreender um texto literário. No entanto, ao criar mais um variável, até que ponto o leitor se interessará em se instruir para compreender cada autor? Se para compreender cada obra de cada escritor for preciso criar uma nova pedagogia de leitura, isso não afastará a literatura cada vez mais de seus leitores? "Minha literatura dá trabalho", pode dizer o escritor, mas num mundo onde o tempo é cada vez mais reduzido, onde o ser humano divide sua atenção com uma série de mídias e é invadido por uma enxurrada de informação, até que ponto isso faz sentido? Num cenário onde predomina o hermetismo, não teria razão Philip Roth quando disse que a literatura irá acabar por falta de leitores?
Com essas perguntas não quero dizer que tudo isso é ruim e os autores que optaram pelo caminho mais difícil estejam errados. Tudo que serve para avançar os limites do que o senso comum adota como padrão é interessante em certa medida. Podem até acusar o "Finnegans Wake" de Joyce como sendo ilegível, mas nunca que o texto de Joyce não traz uma nova compreensão sobre a representação do espaço, do tempo e de personagens na literatura. Mas repetir os mesmos efeitos da obra de Joyce no leitor é andar em círculos. Só existe radicalismo pioneiro, o resto é cacoete. Assim como já critiquei uma literatura dita realista por querer retratar a violência assim como Rubem Fonseca já fez lá na década de 70, critico quem faz vanguarda hoje à moda de Joyce, como se isso levasse a alguma coisa. É preciso que a literatura brasileira contemporânea deixe de negar o que ela não é e passe a dizer o que ela realmente é. Um tempo atrás inventaram e pregaram um rótulo: Geração 90. Nas entrevistas que leio, a maioria dos escritores nega o rótulo, preferindo dizer que fazem um trabalho muito diferente de todos. Mas ao mesmo tempo falta uma compreensão do que a literatura brasileira contemporânea faz hoje. Quando ela procura dizer isso, ainda diz de modo muito tímido. Escritores contemporâneos, eis o desafio.