Toda vez que ouço alguém dizer que certa pessoa é um dos maiores escritores vivos vem à minha mente a pergunta "e por quê?". Tenho reparado que na maior parte das vezes o título é dado automaticamente, somente pelo fato do leitor ter gostado muito de um livro ou às vezes trata-se somente de uma repetição daquilo que ouvem. Ao invés de responderem clara e objetivamente à indagação, a resposta é enviesada, talvez se referindo a um relativo sucesso comercial ou crítico. Um exemplo disso é o escritor Philip Roth. Nessa época do ano, quando se anuncia o ganhador do prêmio Nobel de Literatura, uma série de pessoas pela internet repetem o nome do autor como o mais provável 'nobelizável'. Nada demais. No entanto, acaba de sair um dos melhores livros do escritor aqui no Brasil e, apesar de ler várias críticas elogiosas do livro em diversos jornais e revistas, foram poucos os leitores que comentaram algo a respeito. Como explicar o fenômeno?
"Homem Comum" é uma novela centrada na morte e serve bem para responder objetivamente porque Roth é um grande escritor contemporâneo. O livro é um relato racional de alguém que se vê com um corpo cada vez mais decadente e próximo da morte. O personagem Construído por Roth é complexo, difícil de sentir qualquer empatia, um homem que tomou decisões das quais se arrepende. Abandonou a primeira mulher e por isso seus dois filhos deste casamento o odeiam. Um caso com uma modelo leva sua segunda esposa a abandoná-lo e como conseqüência, se afasta da filha que o adora. Após o terceiro casamento fracassar, ele se afasta também do irmão, que o apoiava incondicionalmente, por causa da inveja que sente de sua saúde perfeita. Depois de uma carreira de sucesso como publicitário, resolve se dedicar à pintura, mas com o tempo abandona a arte, apesar do talento. Embora seja certo que não há saída para a morte, mesmo que se procure alternativas, o relato é de alguém que não aceita isso. É esta a idéia central. Mesmo sendo bem-sucedido financeiramente ou buscando satisfação emocional num casamento estável ou procurando uma eminência através da arte ou ainda se entregando ao prazer sexual irrestrito, nada pode tornar a idéia da morte algo mais suportável. A morte é um tormento, um ponto de vista que está presente em todas as páginas do livro.
Mesmo com tudo isso, no entanto, seria um erro classificar o livro como uma alegoria da mortalidade humana. Não há o desejo de se escrever sobre o tormento que a morte representa para toda a humanidade. A obra de Roth é particular, íntima. Como muitos disseram por ocasião do lançamento do livro, ficção e biografia se confundem. Não é o Philip Roth autor quem está enfrentando a morte, mas sem dúvida foi a reflexão sobre ela que tornou possível ao autor escrever um livro tão impactante. Alguns eventos pessoais são apresentados na obra e não seria errado supor que foram responsáveis por reflexões que levaram o autor a escolher o tema.
Ao mesmo tempo, propositalmente ou não, é possível reconhecer também elementos universais na história. Por exemplo, a questão religião versus ateísmo moderno. Não há um juízo de valor a respeito do tema, mas está claro como o autor tem enxergado a distância cada vez maior entre os dois grupos. Notar como são descritos os dois funerais da obra é revelador: no início, do próprio "homem comum" do título e, durante a história, do pai dele - que cronologicamente ocorreu antes. No funeral do pai, um rabino conduz a cerimônia e os parentes são convidados a cumprir o ritual de cobrirem eles mesmos a cova do morto. No funeral do personagem principal, no início da obra, tudo é simples, apenas alguns poucos se reúnem para dizer algumas palavras de despedida. O que é comum neles é o desalento causado pela morte, a incapacidade que tanto da religião como da razão pragmática - ou se o leitor preferir, um modo de vida niilista - de dar algum conforto à perspectiva de inexistência.
Deixando o enredo de lado e focando a atenção na linguagem é possível também reconhecer Roth como um excelente autor. Em "Homem Comum" não encontramos o humor cáustico de "O Complexo de Portnoy", por exemplo, mas as grandes frases continuam lá. Roth tem a capacidade de resumir uma série de idéias em uma única frase. No caso da novela, é possível dizer que o livro inteiro às vezes é resumido em trechos brilhantes. Um exemplo disso é quando uma de suas alunas de pintura - uma senhora chamada Millicent - conta sobre a terrível doença que se abateu sobre seu marido, um executivo daquele tipo que nunca está parado. O resultado da situação é resumido assim:
"...a depressão corrosiva de um homem que antes estava envolvido em tudo e agora estava imerso no nada."
Não seria esta também a situação do homem comum, cuja história está sendo contada? Um sujeito que vê seu corpo cada vez mais frágil à medida que envelhece e, ao mesmo tempo, vê-se cada dia mais afastado de todos, "imerso no nada"?
O livro mostra como Roth é capaz de amarrar grandes temas contemporâneos a enredos envolventes, construindo personagens complexos e expandido nossa capacidade de percepção de humanidade. Prova a capacidade do escritor de utilizar a linguagem com um talento capaz de produzir as mais diversas emoções, menos a indiferença. Portanto, se houver alguma dúvida sobre a importância de Roth para literatura, basta ler "Homem Comum".
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