Num dia desses que a gente pensa de modo bem descompromissado, tentei imaginar como seria o mundo se inventassem um espelho que nos mostrasse os pontos fortes e fracos de nossa aparência. Nada como o espelho da história da Branca de Neve, algo um pouco mais sofisticado. Os desavisados que sempre saem de casa com a gravata torta, antes de se afastarem da frente do tal espelho, seriam alertados com os dizeres "ajeite sua gravata!". As mulheres que insistem em combinar itens de modo inusitado (uma sombra prata, com brincos dourados e um colar de pérolas, por exemplo) leriam o enfático aviso "ficou péssimo". Enfim, algo que fizesse com que o espelho que conhecemos, se tornasse um membro de nosso passado longínquo. Não quero discutir aqui a questão tecnológica de se implementar algo do tipo, se isso seria viável ou não, mas imagino que sua inviabilidade residiria no fato de que muitos não se sentiriam satisfeitos de ver explicitados defeitos (embora acredito que a grande maioria se sentiria muito lisonjeado de ser elogiados todos os dias). Quando penso sobre a literatura e seus melhores personagens, observo que estes são justamente aqueles que funcionam como esse espelho: não são apenas humanos, mas ampliam nossa capacidade de perceber defeitos e qualidades dos seres humanos. Um personagem apenas humano, quando não passa despercebido, é apagado de nossa memória depois de pouco tempo. Ao contrário, quando um personagem é um amplificador das características do ser humano, este costuma ficar nas nossas lembranças.
Se eu propusesse a vocês dizerem que personagens da ficção cumprem esse papel, certamente uma série deles seriam eleitos por uma variedade de motivos. Em minhas lembranças tenho dois personagens que são cativantes dum modo muito forte: Don Fabrizio, o Leopardo de Lampedusa, e Florentino Ariza de "O Amor nos Tempos do Cólera" de Gabriel Garcia Marquez. No livro "O Leopardo" de Lampedusa, vemos um personagem num período especialmente cheio de incertezas, uma época de degradação da então nobreza siciliana, da qual o personagem fazia parte. Em meio a todos os debates políticos e idéias revolucionários, Lampedusa constrói um personagem simplesmente genial. Genial por quê? Porque é um amplificador das características humanas. Toda a turbulência ao redor de sua vida que nos é contada não o transforma numa caricatura, mas numa pessoa que se preocupa com sua família (de modo especial com seu sobrinho Tancredi), a ponto de esquecer qualquer ponto de vista e apoiar a mudança que virá, já que este é o único modo de garantir algum poder e influência. Um ser humano que toma decisões difíceis, que erra e acerta, e que de modo comovente, ao final, tenta fazer o balanço de sua vida e reconhece que pouco de tudo o que fez realmente poderia ser rotulado de 'vida'.
Na obra de Gabriel Garcia, sinto especial atração por um momento específico do relato. Florentino Ariza marcha firme em direção à Fermina Daza, mas ao invés de lhe dirigir a palavra com uma declaração de amor rebuscada, fala à sua tia, pedindo-lhe que se retire para conversar a sós com Fermina. A tia espantada se recusa e ele mantém a postura dizendo que, desse modo, não falaria e ela seria a única responsável por isso. Tudo depois é lindo, mas sempre presto muita atenção ao trecho. Quem já foi um adolescente perdidamente apaixonado deve saber o que significa uma postura tão digna. Embora a fachada apresente firmeza, por dentro tudo é um turbilhão de emoções e incertezas. O frio na barriga, as pernas que tremem, a boca seca e as mãos suadas. Mesmo assim Florentino Ariza vence o desafio, se colocando como o cavaleiro dos sonhos de sua dama e impõe suas condições para conquistar os sentimentos de sua amada. Como não sentir simpatia por um personagem escrito assim, de um modo que reflete características que nós conhecemos tão bem, por serem estas também nossas características?
Quando me referi à inviabilidade de se produzir um instrumento que causa a insatisfação de explicitar defeitos, pensei também em como este espelho poderia fazer isso de modo belo, com algum tipo de atenuante. Não consegui imaginar nenhum artifício. Talvez por isso a literatura não seja uma comparação adequada. Talvez tal espelho se assemelhe mais aos cadernos policiais dos jornais, ou a coluna de fofocas de gente famosa das revistas semanais. A literatura se eleva acima deste mundo feio que muitos insistem em afirmar que é o real. Na literatura, quando vemos nossos próprios defeitos e qualidades, belamente trabalhados, somos inclinados a pensar sobre o mundo também de um modo positivo, apesar de seus problemas.