O pior romance da história da Literatura?por
Sérgio Barcellos Ximenes Respondendo
Do ponto de vista do leitor comum, sim. Do ponto de vista do crítico literário, do resenhista, do professor de literatura ou do escritor (e de, quem sabe, alguns leitores que compartilham os critérios desses profissionais), não. Mas esse "não" será especificado no segundo artigo da série.
Se podemos fazer uma afirmação genérica sobre o modo de leitura da maioria dos leitores, ela é: o seu modo de ler romances não lhes permite gostar do que não gostam, ou não gostar do que gostam, experiências comuns na vida do crítico literário, do resenhista de livros e do professor de literatura.
A experiência válida para a maioria dos leitores é aquela que se situa entre o momento do início da leitura do romance, no primeiro capítulo, e o momento do final da leitura, no último capítulo. Com base nas reações emocionais e intelectuais geradas pela leitura, o juízo final é feito e mantido, independentemente de argumentos e juízos contrários que venham a ser lidos em resenhas, críticas ou estudos literários, ou de avaliações contrárias que venham a ser ouvidas de pessoas amigas ou autoridades no romance. O leitor comum é fiel a si mesmo: ele jamais negará a qualidade de sua experiência real de leitura. Parodiando o lema "vale o escrito", para ele "vale o lido".
Já o trabalho dos críticos, resenhistas e professores raramente menciona as experiências reais que eles teriam se lêssem o romance para proveito próprio. Esses profissionais não lêem como amadores, mas como ... profissionais. Durante e, especialmente, ao final da leitura, o crítico ou o resenhista pensa sobre o enredo e os personagens, insere o romance na história daquele gênero literário e estabelece relações com outros romances e autores, entre outras atividades intelectuais próprias da avaliação literária profissional. Do resultado desse processo de análise resultam o valor da obra e o conteúdo de seu artigo ou resenha.
Assim, no trabalho dos críticos, resenhistas e professores de literatura é comum haver uma discrepância entre o que eles vivenciaram como leitores e o que afirmam como analistas: um livro indigesto, difícil de aturar (quanto mais de gostar) durante a leitura, pode ser, depois dela, considerado um "clássico", uma obra recomendada a todos. Críticos, resenhistas e professores de literatura, muitas vezes, valorizam obras de que não gostaram como leitores. Para eles, mais vale o que vem depois da leitura, o raciocínio objetivo sobre a obra, do que a experiência da leitura, a vivência subjetiva da obra. Para eles, não "vale o lido", mas sim o significado que pode ser atribuído ao conteúdo da leitura.
Críticos, resenhistas e professores de literatura apreciam Ulisses, de James Joyce.
Provavelmente, na literatura ocidental, não haja obra mais carregada de (desculpe o palavrão) paratextualidade do que Ulisses. Se você ainda não leu o romance (isto é, se pertence a esse grupo formado por 99% do total dos leitores), pense em tudo quanto "sabe" sobre Ulisses, isto é, em todas as opiniões, artigos, menções em resenhas, já lidas por você ao longo de anos, referentes ao romance de James Joyce. E pense na impressão causada por esses conteúdos: como são os personagens, como se desenvolve a trama, qual é o tema da história, qual o grau de dificuldade esperado da leitura do romance, como é o estilo de Joyce.
Essas informações obtidas não da leitura do texto, mas de outras fontes, constituem um exemplo de paratextualidade. (Não adianta procurar no "Dicionário Aurélio" nem no "Dicionário Houaiss": esse conceito só existe na cabeça dos estudiosos de literatura e nos seus textos.)
Portanto, estes artigos, para quem não leu Ulisses, representarão mais um exemplo de paratextualidade, mais um conjunto de informações sobre a obra, que pode influenciar a decisão de comprar ou não o livro, ler ou não ler o romance, interpretar o enredo desta ou daquela maneira, classificar a obra neste ou naquela categoria.
Por ser Ulisses o mais sagrado ícone do romance moderno, faço aqui um pedido explícito: receba o que vai ler a seguir como uma opinião pessoal, só minha, carregada de subjetividade. Não atribua nenhuma autoridade a ela, e deixe para tirar suas próprias conclusões se e quando tiver acesso ao livro. Mantenha-se fiel ao lema do leitor comum: "vale o lido", quando ele for uma experiência pessoal direta.
Então vamos nós.
Ulisses é um embuste. O maior embuste da Literatura universal. Não o livro em si, mas o que fizeram dele.
Defina "embuste" para mim, mestre Houaiss: "Mentira ardilosa; logro".
Capa do romance 'Ulisses'
Para explicar bem essa conclusão, derivada da leitura de todas as 957 páginas do livro (sim, eu consegui - ainda não acredito, mas consegui), preciso dar uma idéia geral das características de Ulisses.
Logo no primeiro capítulo, que vai da página 9 à 70 na tradução brasileira de Antônio Houaiss, ficam patentes algumas características do estilo de Joyce e da tradução de Houaiss.
Por exemplo, a combinação adjetivo + substantivo + adjetivo:
escura escada espiral (p. 9)
meneante cara grugulhante (p. 9)
fornida cara sombreada (p. 10)
soturna queixada oval (p. 10)
louros cabelos carvalho pálido (p. 11)
largas pardas vestes funéreas (p. 12)
verde bile viscosa (p. 12)
móveis olhos azul-esfumaçados (p. 13)
curvos lábios escanhoados (p. 13)
brancos dentes resplandecentes (p. 13)
forte tronco compacto (p. 13)
louros cabelos despenteados (p. 15)
precípites pés lucífugos (p. 17)
undialvas palavras acopladas (p. 17)
longos acordes baixos (p. 17)
áspero respirar ruidoso (p. 18)
escura sala abobadada (p. 20)
bem-vindo ar lúcido (p. 20)
insinuante voz inquiridora (p. 22)
meloso tom amaneirado (p. 22)
rascante voz rouquenha (p. 22)
branco leite generoso (p. 23)
velhas mamas flácidas (p. 23)
mofino escárnio jesuítico (p. 26)
luminoso instante silente (p. 29)
radiosa cara largamente ridente (p. 29)
tranqüila boba voz feliz (p. 29)
orgulhosos títulos potentes (p. 32)
vermelha cara resfolegante (p. 33)
lisa cabeça parda (p. 35)
lívida chama final (p. 35)
esborrachado caracol desossado (p. 40)
brilhosos olhos impiedosos (p. 40)
longos traços rombudos (p. 40)
azedo ar tabaqueiro (p. 42)
pardacento couro surrado (p. 42)
lerdos olhos plenos (p. 49)
ávidos gestos inofensivos (p. 49)
húmido bulbo crocante (p. 57)
pastosa massa arenosa (p. 57)
escuras redes astutas (p. 57)
crua luz solar (p. 59)
ruidosos espadachins intrépidos (p. 61)
crepitantes fogos resinosos (p. 63)
mudas ternuras ursinas (p. 64)
argênteas frondes recatadas (p. 68)
Na tradução, Houaiss deve ter visado também ao mercado literário de Portugal. Estas palavras causam estranheza, ao serem lidas:
direcção (p. 16)
objectarem (p. 26)
facto (p. 26)
indirectas (p. 26)
actos (p. 31)
ejectou (p. 33)
jactos (p. 33)
tacteando (p. 34)
subjectivo (p. 41)
objectivo (p. 41)
ejectou (p. 49)
direcção (p. 49)
directores (p. 50)
exactamente (p. 52)
tacteia (p. 52)
cateléctico (p. 52)
direcção (p. 57)
húmido (p. 57)
jacto (p. 59)
facto (p. 60)
projectá-los (p. 60)
tacto (p. 67)
tacteavam (p. 70)
Uma das características do estilo joyciano são os neologismos, palavras criadas pelo autor, geralmente pela junção de duas palavras conhecidas. Eis as traduções de Houaiss:
verdemuco (p. 11)
escrotoconstritor (p. 11)
canicarcaça (p. 13)
herbicaules (p. 15)
vegetissombras (p. 17)
harpicordas (p. 17)
almiscarperfumado (p. 18)
piscideuses (p. 21)
aljofarcetinado (p. 23)
sobrondulante (p. 35)
sangüinirrajado (p. 36)
cadaverinjuncada (p. 36)
marifrígidos (p. 44)
inabominantes (p. 44)
mortivômito (p. 47)
marissêmen (p. 52)
maribodelha (p. 52)
azulargênteo (p. 52)
gruinchando (p. 53)
umbilicordão (p. 53)
tramatrançado (p. 53)
alvicúmulo (p. 53)
pereternidade (p. 53)
mulherfantasma (p. 53)
uniuniram (p. 53)
contransmagnificandjudeibumbatancialidade (p. 53)
malzodiacado (p. 53)
omofórion (p. 53)
alvimontados (p. 54)
luciventibridões (p. 54)
sinsenhorando (p. 54)
tambormorilando (p. 55)
eqüiniventas (p. 55)
basiliscoculado (p. 56)
garlatingalhando (p. 58)
familiaei (p. 59)
gestojacto (p. 59)
postprândio (p. 59)
sanguiniflorida (p. 60)
carossuda (p. 60)
mosquicocozadas (p. 61)
indesesperançável (p. 61)
iulandeixe (p. 62)
sanguibicancudas (p. 62)
danivíquingues (p. 62)
grassicarne (p. 63)
decaucoloridas (p. 63)
fimbrirrenda (p. 64)
maridirigidas (p. 64)
cocleicoletores (p. 64)
rubrifolegando (p. 64)
canicrânio (p. 64)
canifaro (p. 64)
lentigalopava (p. 64)
quasequaseando-o (p. 65)
occidentante (p. 66)
luninflada (p. 66)
miriadinsuladas (p. 66)
viniscuro (p. 66)
nuptileito (p. 66)
nataleito (p. 66)
espectriciriado (p. 66)
omniventrante (p. 66)
juralonjuralonjuralonjura (p. 66)
hominiforma (p. 67)
vergonhiferidas (p. 67)
longuiciliados (p. 67)
azulívido (p. 67)
gravigomosas (p. 68)
serpiplantas (p. 68)
verdiáureas (p. 68)
freixestoque (p. 68)
marisserpentes (p. 68)
espumicharco (p. 68)
salbranqueado (p. 69)
gaseicadáver (p. 69)
maritrânsito (p. 69)
sandalizante (p. 69)
Também aparecem várias frases, versos ou palavras nos idiomas francês, italiano, inglês, alemão e latim. Todos sem tradução. Isso acontece nas páginas 9, 11, 18, 21, 32 (2), 34, 35, 52 (3), 53, 54, 55 (3), 57 (5), 58 (7), 59 (5), 60 (3), 62, 63 (2), 66 (2), 68 (2) e 69 (3).
O nível culto da língua e o vocabulário bastante diversificado se fazem notar. Alguns exemplos:
revérbero (p. 13)
jalapa (p. 14)
hamaca (p. 20)
exprobrativo (p. 23)
imo-senso (p. 26)
pétaso (p. 30)
saquitel (p. 36)
perolário (p. 37)
azevinho (p. 39)
menagem (p. 46)
supedâneo (p. 46)
cibório (p. 46)
saíbe (p. 62)
peltre (p. 62)
prímula (p. 63)
áugure (p. 67)
Há também, neste primeiro capítulo, uma grande quantidade de nomes de pessoas, lugares e obras, quase sempre mencionados de passagem e sem que o tradutor as explique por meio de notas de rodapé. São eles:
Oxford, baía de Dublin, Kingstown, Dottyville, Wilde, Caliban, Bray Head, Richmond, Lalouette, Clongowes, Sandycove, Dundrum, Grogan, Mabinogion, Upanishads, Maria Ana, Hamlet, Quartier Latin, Martello, Billy Pit, Tomás de Aquino, Elsinore, Mercúrio, Fócio, Ário, Valentim, Sabélio, angra de Bullock, Westmeath, Blake, Pirro, Vico Road, Argos, Júlio César, Lycidas, Santa Genoveva, Shakespeare, Averróis, Moisés Maimônides, Albert Edward, O'Connell, Diamond, Armagh, John Blackwood, Ards of Down, Lord Hasting, Duque de Westminster, Duque de Beaufort, Liverpool, Galway, Cassandra, Koch, Mürzster, Helena, Menelau, Tróia, MacMurrough, O'Rourke, Parnell, Ulster, Hotel City Arms, Sandymount, Leahy, Liberties, Edenville, Adão Kadmon, Eva, Chippendale, Ferrando, Joaquin Abas, Howt, Pico della Mirandola, Ringsend, Léo Taxil, Columbano, Rodot, Arthur Griffith, Drumont, Rainha Vitória, Maud Gonne, Millevoye, Félix Faure, Upsália, Malahide, Richard Burke, Clerkenwell, Goutte-d'Or, Gît-le-Coeur, Kilkenny, Strongbow, Sion, Kish, Elsinore, Louis Veuillot, Gautier, Malaquias, Liffey, York, Or san Michele, Harum al-Raxid, Royal Dublins, O'Loughlin de Blackpitts, Fumbally, Cassiopéia, Hodges Figgis, Cloyne, Leeson, Pã, Cock, Tennyson.
O narrador, ao contar a história, relaciona-se com poucas pessoas, mas uma boa quantidade de outros personagens é mencionada durante as conversas, aparecendo neste capítulo apenas como nomes, sem outro referente concreto.
Haines, Algy, Conolly Norman, Úrsula, Clive Kempthorpe, Aubrey, Ades de Magdalen, Peter Teazle, Loyola, Fergus, Royce, Turko, Janey Mack, Cahill, Bannons, Carlisle, Lily, Seymour, Cochrane, Armstrong, Comyn, Edith, Ethel, Gerty, Talbot, Cyril Sargent, Deasy, Halliday, McCann, Fred Ryan, Temple, Russell, Cousins, Bob Reynolds, Kohler, McKernan, Henry Blackwood Price, Florence MacCabe, Patk MacCabe, Sally, Walter, Richie, Golf, Shapland Tandy, Foxy Campbell, Patrice, MacMahon, Kevin Egan, Perkin Warbeck, Lambert Simmel, Guido, Hannigans, Yvonne, Madeleine, Esther Osvalt.
E há ainda, é claro, o próprio estilo de Joyce. Este trecho da página 62, um dos mais legíveis de todo o capítulo, pode passar uma idéia de como se dá a leitura.
"Uma carcaça inchada de cão jazia reclinada sobre bodelha. Diante dele a apostura de um bote, soçobrado no saibro. Un coche ensablé, Louis Veuillot chamou à prosa de Gautier. Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram aqui. E lá, os montículos de pedras de construtores mortos, cortiços de fuinhas. Esconde ouro lá. Tenta-o. Tens algum. Areias e pedras. Prenhes de passado. Brinquedos do Senhor Bicho-Papão. Cuidado para não receberes um bofetão na cara. Sou o danado do gigantão que rola os danados dos pedregulhões, ossos para os passos das minhas passadas. Fiufeofium. Eu xinto o xeilo do xangue num ialundeixe."
O conteúdo dos pensamentos do protagonista, Leopold Bloom, das descrições do narrador e das falas dos outros personagens revela a total falta de seletividade por parte do autor. Joyce simplesmente descreve, em minúcias e do seu jeito enigmático, um dia (16 de junho de 1904) na vida de um grupo de amigos.
Agora que você já tem uma idéia inicial de Ulisses, faça o seguinte exercício de imaginação. Coloque-se no lugar de um autor que pretende escrever um romance, movido por esta intenção:
"I'll put in so many enigmas and puzzles that it will keep the professors busy for centuries."
Tradução: "Incluirei tantos enigmas e quebra-cabeças que ele [o meu romance] irá manter os acadêmicos ocupados durante séculos".
Todo romancista tem o direito de determinar os critérios de elaboração de suas obras. Mas pare e pense: se esse romancista realmente fizer o que se propõe, conforme explicitado naquela declaração, ele terá criado um romance? Assim, apenas um "romance"? Ou terá criado um romance de uma determinada categoria, de um gênero muito particular e específico?
A propósito, Joyce não escreveu essa frase. Ele escreveu: "I've put in so many enigmas and puzzles that it will keep the professors busy for centuries." Só mudei o "I've" ("incluí") para "I'll" ("incluirei"), o passado para o futuro, porque desse modo o exercício de imaginação funcionaria melhor para mostrar a intenção que presidiu à feitura da obra. Ele disse e fez.
Próximo ao final do primeiro capítulo, as características do romance me fizeram lembrar de outras obras de natureza semelhante, na história da Literatura, obras nas quais o autor usou a ficção para brincar com as palavras. Por exemplo, em La Disparition (1967), o francês Georges Perec não utilizou uma vez sequer a letra E, forma de composição denominada tecnicamente de "lipograma". Pensando nisso, comecei a suspeitar de que Ulisses se tratava de uma obra pertencente a um categoria muito específica, estreitamente relacionada a outra atividade profissional a que, por coincidência, estou ligado. Uma rápida pesquisa na Internet me levou à frase reproduzida acima. E então entendi.
Às vezes somos incapazes de perceber o óbvio porque ele ainda não foi enunciado por uma autoridade. Assim, tendemos a aceitar as categorias empregadas por quem chegou antes de nós, ainda mais quando essas pessoas têm o poder de enunciar juízos inquestionáveis em sua área.
Aceita-se a classificação de "romance histórico" para Ivanhoé, de Walter Scott, e para Dias e Dias, de Ana Miranda. Aceita-se a a classificação de "romance policial" para O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett, e para Uma Janela em Copacabana, de Luiz Alfredo Garcia Roza. E aceita-se a classificação de "romance espírita" para Tudo Tem Seu Preço, de Zibia Gasparetto, e para Memórias de um Suicida, de Yvonne A. Pereira. Aceita-se com propriedade, porque tais obras exibem as características específicas de cada um desses gêneros literários.
Também existem em Ulisses características suficientes para justificar a especificação da categoria genérica "romance". São elas:
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1. A intenção do autor.
A frase de James Joyce, reproduzida acima, revela que o autor considerou sua obra, desde a concepção, uma espécie de vale-tudo na área da criação de enigmas e de jogos de palavras.
2. A construção do texto.
A leitura de Ulisses permite constatar que o autor realmente incluiu no texto uma grande quantidade de recursos lúdicos, enigmas, alusões, citações e brincadeiras lingüísticas, como era seu propósito.
3. A leitura do texto.
Não se lê Ulisses com a mesma atitude reservada aos romances que apresentam princípio, meio e fim bem definidos, e um enredo cujos fatos e significados sejam acessíveis ao leitor, ainda que essa apreensão dependa de algum trabalho intelectual de nossa parte. É impossível, no caso do romance de Joyce, simplesmente acompanhar a história e apreciar a condução dela pelo narrador. A atitude imposta pelo autor ao leitor é a de aceitação de um desafio intelectual, de extraordinária dificuldade. O leitor deve estar atento a cada detalhe do texto, buscando dicas ocultas para entender cada passagem (ou mesmo cada palavra), e sua mente deve se manter bem afiada, pesquisando fatos na memória, gerando e testando hipóteses, avaliando interpretações alternativas e verificando a validade de suas suposições na seqüência da leitura.
4. A interpretação do texto.
Nos romances convencionais, o leitor tem acesso a uma história e à sua interpretação, sugerida ou explicitada pelo narrador. Em muitos romances modernos, o narrador procura deixar dúvidas sobre o significado dos fatos ¾ isso quando não afirma explicitamente que há várias interpretações possíveis para a sua história. Já em Ulisses, tanto a interpretação da história como um todo, quanto a interpretação de cada um de seus capítulos e de cada uma de suas cenas (quando não das próprias frases) torna-se um mistério a ser decifrado pelo leitor.
Prova disso é a quantidade de estudos publicados sobre o romance. Nenhum leitor sozinho conseguiu descobrir todos os truques, alusões e jogos de palavras criados por James Joyce. Para captar muitas dessas nuances, é preciso comprar vários livros e ler vários ensaios ou artigos de especialistas na obra, correndo o risco de se deparar com autores que, na ânsia de interpretarem o texto, acabam vendo o que não existe e projetando conteúdos de sua própria imaginação sobre a obra.
Esta página da Web apresenta uma lista de livros recomendados a quem deseja começar a entender o nível de complexidade presente em Ulisses.
Além de ficar extremamente atento no nível dos detalhes e das relações internas entre os enigmas plantados por Joyce, o leitor de seu romance precisa decifrar outras informações essenciais, referentes à estrutura total do enredo. Alguns exemplos:
. A relação de cada capítulo com a jornada de Ulisses na Odisséia (especificada no título de cada parte, em inglês, mas deixada de lado na tradução de Houaiss, dividida somente em três capítulos).
. A relação dos personagens do romance com os daquele texto épico.
. A relação das cenas com órgãos do corpo, artes, cores, símbolos e técnicas narrativas.
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Portanto, no relacionamento do leitor com Ulisses conta mais o desafio da atividade de decifração do significado, do que o prazer da leitura do texto e do acompanhamento de uma história. Quando essas diferenças são percebidas, torna-se evidente que Ulisses se insere numa categoria específica de romance, bem distante do romance convencional ou mesmo do romance dito moderno.
A história da literatura registra várias outras obras de conteúdo e propósito semelhantes, embora em grau bem menor de complexidade. Alice no País das Maravilhas atrai até hoje os estudiosos da literatura devido aos jogos de palavras inseridos na história por Lewis Carroll, como o prova o clássico Alice, Edição Comentada, de Martin Gardner, recentemente relançado no Brasil. Outros escritores utilizaram a forma do romance para brincar com as palavras. Mencionei antes Georges Perec, membro do grupo Oulipo, fundado em 1960 por Raymond Queneau e destinado a explorar a inserção dos jogos de palavras na literatura dita "séria".
Ulisses pertence a essa área da literatura, ou seja, à combinação entre literatura e enigmismo. Trata-se de um romance-enigma. Tecnicamente, não é correto designá-lo como o vêm fazendo os estudiosos da literatura, há décadas: um "romance", e ponto.
E, dentro dessa categoria, Ulisses é o mais complexo romance-enigma jamais criado, pelo número de enigmas do texto e pelo número de páginas da obra. Joycianamente, aliás, proponho intitular essa categoria como "romancenigma".
Assim conceituado, é fácil entender a relação dos leitores com o livro. Tratado como romance "normal" ou como uma história tradicional, Ulisses é insuportável, um texto desastroso do ponto de vista da recepção. O "enredo" e o estilo exigem um grau altíssimo de paciência, cultura, inteligência, esforço mental e elaboração do conteúdo exposto nas 957 páginas, anos-luz além dos exigidos pelos demais romances. Falando da experiência pessoal com a obra, consegui chegar ao final dela impondo-me um limite de 20 páginas diárias, nem mais nem menos, "tomadas" como remédio amargo, sem reclamar.
Abrindo um parêntese: Ulisses é o mais extraordinário exercício dos direitos do autor, na área da ficção. Mas esse exercício criou tantos obstáculos à fruição da leitura que fez do livro o menos amigável da literatura universal, do ponto de vista do leitor.
E, por ser um romance de uma categoria muito específica, a parcela do público leitor que pode vir a gostar deste livro de Joyce é mínima. Mesmo entre os apreciadores de enigmas e de jogos de palavras, muitos consideram que as 957 páginas de enigmas transformam o prazer numa obrigação. Entre eles, eu. Para dar uma idéia de como esse público-alvo de Ulisses é restrito, sou membro da National Puzzlers' League (a Liga Nacional dos Enigmistas), a mais antiga associação de enigmistas do mundo, fundada em 1883 nos Estados Unidos. A NPL possui pouco mais de 400 membros em todo o mundo ¾ e isso, mesmo com a facilidade representada pela filiação via Internet. Abaixo da linha do equador, só há um membro ativo: este escritor.
A diferença básica entre Ulisses e o outro romance-enigma que se tornou um clássico da Literatura, Alice no País das Maravilhas, está na relação entre o primeiro e o segundo planos da narrativa. Alice possui uma história fácil de acompanhar, no primeiro plano, o nível superficial da obra; quem se interessa, pode então procurar no segundo plano o seu nível complexo, exercendo a atividade de decifração dos enigmas plantados ali por Lewis Carroll. Já Ulisses trouxe os enigmas para o primeiro plano, deixando a história praticamente sepultada por ele.
A conclusão é óbvia: entre os leitores comuns, só deve ler Ulisses quem gosta dessa categoria de romances, o romance-enigma, que possui regras específicas para a sua criação e que exige um tipo específico de relacionamento do leitor com o conteúdo e a forma do texto. Quem aprecia a compreensão e o acompanhamento de uma história, ainda que uma história elaborada com um razoável grau de complexidade, perderá dinheiro e/ou tempo se vier a se curvar à imposição da leitura desse clássico, apenas por ser um "clássico", obrigação muitas vezes reforçada, sutil ou abertamente, nos artigos de críticos e professores de literatura.
Aliás, foi admirável a campanha de marketing realizada pelos críticos e pelos professores de literatura, durante décadas, tentando convencer os leitores de que "todos" deveriam conhecer esse romance-enigma, escondendo, com isso, a sua destinação a quatro públicos-alvo bem específicos: os estudiosos da literatura, os escritores profissionais, os apreciadores de enigmas e os masoquistas literários.
Este é o sentido do termo "embuste": o logro em que caíram tantos leitores, durante tanto tempo.
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"Porque você vê - fala Bloom - para uma propaganda é preciso repetição. Este é o segredo todo." (p. 419)
Mas ...
"[...] uma história é boa até que a gente ouve outra [...]" (p. 421)
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Referências. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss, 2001.
. Ulisses, James Joyce, Civilização Brasileira, 2000.