Brasileiros Lêem Pouco
Notícia do Estadão.
Literatura - tudo e mais um pouco.
Para exemplificar como é importante reconhecer referências em uma obra, tome por exemplo o livro "O Grande Gatsby" de F. Scott Fitzgerald. Pode-se ler dois livros. O primeiro, sem um conhecimento prévio do que era os EUA nos anos vinte, o período do American Dream, é um livro legalzinho, com personagens bem construídos e uma historinha de amor com começo, meio e fim. O segundo livro é uma obra-prima, que traça um perfil espantoso de uma geração próxima à desintegração, num período de prosperidade material único. Para retratar este período, Fitzgerald mostra, através das ações dos personagens, um povo cínico, ganancioso e cujo principal objetivo é a busca por prazer. A Primeira Guerra Mundial pôs fim a uma série de crenças e a prosperidade americana fez com que a sociedade da época se confrontasse com um desejo de possuir bens dum modo sem precedentes. Junto com isso, podemos citar também que foi uma época de grandes oportunidades para enriquecimento, tornando possível que qualquer um, de qualquer classe econômica, se tornasse milionário do dia para a noite, produzindo assim uma série de contrastes. No livro, a divisão entre East Egg (a sociedade aristocrática estabelecida) e West Egg (os novos ricos) reflete bem estas mudanças e consequentemente o contraste que elas passaram a causar no dia a dia desta sociedade. Fitzgerald, por exemplo, descreve Gatsby, um novo rico, como alguém sem o charme, a classe e a beleza daquela aristocracia tradicional, duma forma até discriminatória. Mas numa avaliação mais profunda, vemos que apesar da beleza e do charme, esta aristocracia é moralmente corrupta, amoral e gananciosa. Os Buchanans exemplificam tudo isso de modo bem claro. Enfim, tais contrastes dão um realce para os defeitos de todos, mostrando que seria até inevitável o declínio.
Quando estudamos história, na maior parte dos casos, lemos à respeito apenas das figuras mais importantes. Ao ler a obra de Fitzgerald, parece que estamos tendo um curso de história inseridos entre as pessoas da época, pessoas de carne e osso como nós, pessoas estas que não têm nada de especial para que no futuro sejam descritas em livros de história. Mas, ao mesmo tempo, compreendemos uma época dum modo que nenhum livro de história é capaz de nos fazer compreender. Percebam que um livro de história é escrito justamente com o objetivo de nos fazer conhecer fatos, mas "O Grande Gatsby" trabalha estes fatos de um modo subjetivo. Assim, ao absorvermos as referências sobre o período, encontramos uma obra que nos faz viver durante um certo período como um membro daquela sociedade. Viajamos no tempo e ao voltar, ganhamos uma nova capacidade de analisar os mesmos fatos que lemos em livros de história. Adquirimos um novo ponto de vista, muito mais amplo e ao fim, percebemos que tivemos o privilégio de ler uma obra-prima.
Algo muito raro hoje em dia é encontrar um livro que, antes de mais nada, seja um livro 'climático'. Hoje em dia a moda é misturar todos os gêneros que você puder ao escrever e produzir o máximo de sensações possíveis no leitor. Isso, é claro, embora produza um ou outro bom livro, em sua grande maioria, sai uma porcaria. Até mesmo os livros policiais que antigamente possuíam apenas aquele delicioso clima ‘noir’, se tornaram engraçados, chatos, românticos, violentos, repugnantes, etc., tudo ao mesmo tempo. Não gosto dessa obsessão por parecer moderno por misturar todo tipo de sensações numa só história, mas sei que sinto falta daquele livro que possuía um clima o tempo todo e que esse clima fica cada vez melhor a cada página.
Para exemplificar isso que digo, vejam "O Coração das Trevas" de Joseph Conrad. Embora, eu não goste muito dos livros de Conrad que já li, não posso negar que "O Coração das Trevas" é simplesmente o supra-sumo dos livros 'climáticos'. Marlow é um personagem excelente, Kurtz surpreendente, mas o grande feito de Joseph Conrad foi conseguir construir um clima no livro que supera qualquer personagem. Aliás a importância do clima parece ser maior até que a própria história. O clima todo é sempre único, uma sensação que incomoda e que a cada página incomoda mais e mais até atingir seu clímax nas palavras de Kurtz: "O horror!". Para quem já leu a obra, é difícil imaginar um livro tão contraditório em sua formulação: se por um lado a história é simples (Marlow é designado para encontrar um maluco no fundão da África), sua estrutura é muito complexa (o foco é sempre o ponto de vista de Marlow sobre Kurtz, dum modo que os dois vão se aproximando até que finalmente se encontram). Pela simplicidade da proposta - o livro concentra-se na maior parte das vezes em apresentar-nos os pensamentos de Marlow em sua viagem pelo rio - seria fácil criar um livro ruim e mais difícil criar um clima próprio, mas não é o caso. O que vemos é sempre um cuidado em pintar um quadro cada vez mais obscuro e exaltar o clima ‘noir’ da obra. Próximo do encontro entre os dois personagens, temos a impressão de estarmos lendo um livro com os olhos embaçados por uma fumaça. Vemos alguns traços e procuramos construir um quadro na mente, completando os espaços vazios com informações hipotéticas. Assim como Marlow, estamos ansiosos em descobrir quem realmente é Kurtz, embora ao final continuemos completando os espaços nós mesmos.
Ao ler "O Coração das Trevas" e perceber o cuidado que o escritor teve para nos fazer sentir incomodados, vejo o porquê de hoje criar um livro com um clima esteja tão fora de moda. Pode-se usar tal mistura como uma maquiagem, ou seja, a mistura de sensações cria uma bela oportunidade para que as deficiências sejam varridas para debaixo do tapete. Afinal, antes mesmo de percebermos o drama, vem logo uma piada que muda o nosso foco e nossa percepção. Assim, é mais fácil atirar para todos os lados sem muito cuidado, do que focar num só ponto e trabalhá-lo, construindo um texto esmerado. E é uma pena, pois esta vontade de criar obras sem qualquer clima faz com que os romances contemporâneos (em sua maioria) sejam tratados como romances leves, enquanto os textos trabalhados com a única finalidade de exaltar um clima, começando de modo gradual até seu clímax, é tachado de chato. Cria-se assim um efeito circular: leitores desacostumados com um texto menos ágil encontram satisfação em leituras 'desleixadas' e editoras publicam apenas aquilo que os leitores vão ler. Um mercado como este é um incentivo à criação de obras que seguem uma fórmula que empobrece a literatura.